terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Lisboa, entre o ser e o não ser já

Lembrei-me desta crónica hoje e, nem de propósito, percebi ao relê-la que foi publicada há precisamente 38 anos. É de uma beleza que comove. Se calhar, nada mudou.

Três horas da madrugada

Três horas da madrugada: onde está Lisboa? Este largo varrido do vento, iluminado por fantasmas de candeeiros, deserto de um lado a outro — ainda é o Rossio? E este chão liso, onde os passos ressoam como no interior de uma caverna, que tem que ver com o campo de feira da luz diurna? Em qualquer parte, enquanto eu descia a Rua do Carmo, uma janela batia e atroava o desfiladeiro da calçada. E à entrada da praça um remoinho erguia folhas e papéis no ar, enquanto no centro dele um pequeno duende invisível (assim mo disseram, pelo menos) repetia os jogos de uma infância nunca vivida.
Lisboa dorme. Dorme profundamente. Todas estas janelas fechadas protegem a escuridão das casas. E lá dentro estão as mulheres e os homens desta cidade, mais as personagens vagas dos sonhos e dos pesadelos. Por sobre os telhados faz-se uma grande permuta de figuras e imagens. Lisboa é uma rede de transmigrações. Ninguém está seguro dentro do seu corpo. Em um lugar da cidade, alguém que dorme chama alguém que dorme, e esta atmosfera que se move no vento frio toda ela atravessada de apelos urgentes. Abrem-se as paredes deste dormitório de um milhão de almas, longa enfermaria ou camarata multiplicada até ao infinito por um efeito de espelhos. E as figuras de sonhos juntam-se aos seres adormecidos, e Lisboa aparece-me irreal, como suspensa entre o ser e o não ser já.
Sem os prestígios da luz, os manequins são baços e indiferentes, quase sumidos sob as roupas e os adornos. Tudo parece insignificante e falso. Entre o vidro e o diamante não há diferença, e os perfumes são líquidos inertes que não acordarão nunca para a vida dos aromas. Dorme tanto a cidade.
Falo e oiço, e estas vozes são, de todas, as únicas que resistiram à letargia. Agora recusamos a porta falsa do sonho — e vamos pelas ruas subitamente intermináveis, onde só os nossos passos reconstituem Lisboa, pureza transparente e quase angustiante de paraíso perdido e achado, e achado e perdido, nesta hora tão breve que não poderemos deter, mas que não se perderá (que não se perderá) nunca.
Três horas da madrugada, talvez quatro. Não tarda que venha o dia. A noite ainda vai durar, mas há nela já uma suspeita de manhã. Sobre o rio começará a nascer a brancura indecisa que o Sol manda adiante. Arrefeceu mais. Daqui, vêem-se as estrelas. Como elas brilham, nítidas, duras, e, para nós, eternas. Dorme a cidade ainda. O rio passa, escuro e profundo, vivo e profanado, com cintilações rápidas à superfície, como as arestas luminosas de um cristal negro. Sobre a muralha de pedra que defende a cidade, as nossas mãos seguram ardentemente o mundo.

José Saramago
"A Capital", 12 de Dezembro de 1968

(encontrei-a no livro "Crónica Jornalística — século XX", de Fernando Venâncio (Círculo de Leitores, 2004).