terça-feira, 23 de janeiro de 2007

"Mais belo um adágio popular do que uma frase de literato"

Foi há quase 80 anos que José Régio escreveu o texto que se segue — brilhante dissertação sobre o que são a originalidade e a sinceridade na literatura. A grafia é a original.

Literatura Viva

Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo
original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence a literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas — mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truc literário.

Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizaram grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe êsse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pêlos nomes que mais aceitação pública gosam. É triste — mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gôsto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitue-se a personalidade pelo estilo. Mas criar um estilo ,já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrata, erudito, amassado de reminiscências literárias, de auto-plágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitue a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são amadores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e mantém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral — presto homenagem às excepções— os nossos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livres, rapetem-se confrangedoramente. E o seu progresso é puramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quási inútil, que se aperfeiçôa (?) segundo êste ou aquele preconceito.

Da pouca originalidade da literatura portuguesa, naturalmente resulta em grande parte a sua pouca sinceridade. Ter uma maneira, é para o nosso escritor achar um certo número de contrafacções que se lhe afiguram mais dentro da sua indecisão de personalidade. O escritor passa então a produzir literatura mais ou menos mecânica. É-me desagradável falar dêstes pobres exemplares da nossa mediocridade; mas assim é preciso: tanto mais que o problema da sinceridade é hoje complicado, como, de resto, todos os problemas contemporâneos. A expressão directa, simples, orgânicamente ingénua, tenta sem dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dele. Os artistas de hoje mais directos, mais simples, mais ingénuos — são-no conscientemente. Salvo raríssimas excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A complicação que julgo ver na Arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca sinceridade: O lirismo e a ironia, o abandôno e a atitude, o subconsciente e a razão — emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de processos e meios de expressão que surpreende, irrita, perturba, ou provoca o desdém dos não iniciados. Mas os verdadeiros não iniciados são os que não teem probabilidades de iniciação. E dêsses, nada a esperar. O verdadeiro papel do crítico é pois discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que êles sejam, dos criadores autênticos. Os primeiros existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a literatura morta de qualquer tempo. Os segundos também existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptível de evolução. Os processos e as formas que êles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibilidade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natural que a sensibilidade contemporânea já não caiba nessas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades diferentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-há [sic] poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que êsse fundo aparecerá mais virgem.

Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo êsse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que êle produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de .Miranda irremediàvelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto; que os Sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais fôrça íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.
José Régio
(revista "Presença", nº 1, 10 de Março de 1927)