Foi há quase 80 anos que José Régio escreveu o texto que se segue — brilhante dissertação sobre o que são a originalidade e a sinceridade na literatura. A grafia é a original.
Literatura Viva
Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence a literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas — mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truc literário.
Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizaram grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe êsse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pêlos nomes que mais aceitação pública gosam. É triste — mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gôsto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitue-se a personalidade pelo estilo. Mas criar um estilo ,já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrata, erudito, amassado de reminiscências literárias, de auto-plágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitue a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são amadores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e mantém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral — presto homenagem às excepções— os nossos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livres, rapetem-se confrangedoramente. E o seu progresso é puramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quási inútil, que se aperfeiçôa (?) segundo êste ou aquele preconceito.
Da pouca originalidade da literatura portuguesa, naturalmente resulta em grande parte a sua pouca sinceridade. Ter uma maneira, é para o nosso escritor achar um certo número de contrafacções que se lhe afiguram mais dentro da sua indecisão de personalidade. O escritor passa então a produzir literatura mais ou menos mecânica. É-me desagradável falar dêstes pobres exemplares da nossa mediocridade; mas assim é preciso: tanto mais que o problema da sinceridade é hoje complicado, como, de resto, todos os problemas contemporâneos. A expressão directa, simples, orgânicamente ingénua, tenta sem dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dele. Os artistas de hoje mais directos, mais simples, mais ingénuos — são-no conscientemente. Salvo raríssimas excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A complicação que julgo ver na Arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca sinceridade: O lirismo e a ironia, o abandôno e a atitude, o subconsciente e a razão — emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de processos e meios de expressão que surpreende, irrita, perturba, ou provoca o desdém dos não iniciados. Mas os verdadeiros não iniciados são os que não teem probabilidades de iniciação. E dêsses, nada a esperar. O verdadeiro papel do crítico é pois discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que êles sejam, dos criadores autênticos. Os primeiros existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a literatura morta de qualquer tempo. Os segundos também existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptível de evolução. Os processos e as formas que êles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibilidade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natural que a sensibilidade contemporânea já não caiba nessas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades diferentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-há [sic] poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que êsse fundo aparecerá mais virgem.
Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo êsse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que êle produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de .Miranda irremediàvelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto; que os Sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais fôrça íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.
Literatura Viva
Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence a literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas — mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truc literário.
Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizaram grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe êsse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pêlos nomes que mais aceitação pública gosam. É triste — mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gôsto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitue-se a personalidade pelo estilo. Mas criar um estilo ,já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrata, erudito, amassado de reminiscências literárias, de auto-plágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitue a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são amadores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e mantém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral — presto homenagem às excepções— os nossos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livres, rapetem-se confrangedoramente. E o seu progresso é puramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quási inútil, que se aperfeiçôa (?) segundo êste ou aquele preconceito.
Da pouca originalidade da literatura portuguesa, naturalmente resulta em grande parte a sua pouca sinceridade. Ter uma maneira, é para o nosso escritor achar um certo número de contrafacções que se lhe afiguram mais dentro da sua indecisão de personalidade. O escritor passa então a produzir literatura mais ou menos mecânica. É-me desagradável falar dêstes pobres exemplares da nossa mediocridade; mas assim é preciso: tanto mais que o problema da sinceridade é hoje complicado, como, de resto, todos os problemas contemporâneos. A expressão directa, simples, orgânicamente ingénua, tenta sem dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dele. Os artistas de hoje mais directos, mais simples, mais ingénuos — são-no conscientemente. Salvo raríssimas excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A complicação que julgo ver na Arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca sinceridade: O lirismo e a ironia, o abandôno e a atitude, o subconsciente e a razão — emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de processos e meios de expressão que surpreende, irrita, perturba, ou provoca o desdém dos não iniciados. Mas os verdadeiros não iniciados são os que não teem probabilidades de iniciação. E dêsses, nada a esperar. O verdadeiro papel do crítico é pois discernir e separar os simuladores, mais ou menos hábeis que êles sejam, dos criadores autênticos. Os primeiros existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a literatura morta de qualquer tempo. Os segundos também existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptível de evolução. Os processos e as formas que êles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibilidade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natural que a sensibilidade contemporânea já não caiba nessas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades diferentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-há [sic] poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que êsse fundo aparecerá mais virgem.
Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo êsse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que êle produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de .Miranda irremediàvelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto; que os Sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais fôrça íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.
José Régio
(revista "Presença", nº 1, 10 de Março de 1927)
(revista "Presença", nº 1, 10 de Março de 1927)