Belíssima e lúcida a crónica de Clara Ferreira Alves no Expresso de hoje, a propósito do referendo ao aborto:
OS PATRÍCIOS e os plebeus nunca se encontram com poder igual, e os patrícios e os escravos muito menos. Os pobres e os ricos também não. Era assim em Roma e é assim em Portugal. Parte da discussão sobre o Sim e o Não num país que prefere o Talvez, centra-se em questões laterais à descriminalização do aborto ou «interrupção voluntária da gravidez» e incide sobre juízos morais e sociais, uns de boa fé e outros de má fé. É muito difícil falar em pobres e ricos desde que se inventaram os excluídos e os desfavorecidos, duas fórmulas amáveis do reino do talvez. Como consegue alguém que vive num mundo confortável, protegido pelos colchões e almofadas da prosperidade, com uma casa e uma família, com as vantagens da ausência de ansiedade, conhecer a insegurança que a pobreza dá? A pobreza começa e acaba na falta de controlo sobre a existência, uma situação em que se está sempre à mercê do outro, dos outros, os que têm poder sobre as vidas alheias. A falta de controlo gera o medo, que é o estado natural de quem não consegue ordenar a sua vida segundo a sua cabeça e a sua determinação. O medo gera a fraqueza, que não ajuda a tomar decisões sensatas ou altruístas. A discussão e paixão em torno do caso do pai biológico Baltazar e da mãe Aidida e da criança adoptada pelo casal que agora enfrenta a justiça e a prisão trazem para a luz problemas vários que nos ajudariam a ver mais claro o que está em causa no referendo sobre o aborto. Na verdade, o pedido de habeas corpus e as 15 mil assinaturas que exigem que o sargento Gomes seja subtraído a uma pena de prisão que não merece juntam nomes que são a favor do Sim com nomes que são a favor do Não. A história, que não poderia ser resolvida por um Salomão contemporâneo, diz-nos que a mãe se viu grávida de uma relação ocasional e que avisou o pai biológico do facto, deparando com a indiferença. Depois de a criança nascer, a mãe, uma estrangeira pobre e sem protecção, pediu ajuda e tentou arranjar um casal que tomasse conta da filha, renunciando à maternidade. Muitas mulheres na situação de Aidida abortam, e abortam em condições miseráveis e clandestinas, sem apoio do pai biológico que agora os tribunais tanto exaltam, e sem apoio médico ou jurídico. Abortam porque são pobres, estão sozinhas, foram abandonadas e nada controlam da sua vida. Abortam porque não conseguem ter a coragem que Aidida teve (e podemos chamar-lhe cobardia, ou não?) de dar à luz e renunciar, entregar a criança a outros pais. Abortam porque têm medo, e não têm dinheiro. Abortam porque não existe nas suas vidas desconfortáveis espaço para uma maternidade responsável e consciente. Melhor seria que não se vissem nestas condições, mas o certo é que vêem e que o país está cheio de potenciais pais biológicos que são os primeiros a descartar-se da responsabilidade e do fardo e a imputarem à mulher, mesmo quando a relação não é ocasional e pode ser matrimonial, a responsabilidade e a «culpa» de não ter prevenido a gravidez indesejada. A culpa, claro. Esta é a realidade, e neste ponto da realidade só quem está dentro dela sabe o que se passa. O caso da Aidida é a excepção. Não apenas porque as grávidas naquela situação não conseguem ter lucidez no meio do pânico, mas também porque não existem por aí tantos casais dispostos a receber uma criança. E todos sabemos o tempo e as dificuldades burocráticas da adopção em Portugal. A Segurança Social portuguesa não resolve casos urgentes. Se a excepção acaba com a sentença de prisão do pai adoptivo, e não coloco aspas na palavra, e com a entrega de uma criança de cinco anos a um pai que nunca viu e que não quis saber dela em tempo útil, ou seja, quando a mãe ficou grávida e o avisou, um pai que exige uma «indemnização» dos pais adoptivos, estamos num pântano moral pior que o pântano jurídico. Uma mulher que siga esta história e veja os seus trágicos desenvolvimentos, não hesitará em abortar. Não estamos a referendar a desvantagem moral de abortar, ou a vantagem moral de ser mãe. Estamos a referendar isto: uma mulher numa situação de descontrolo da sua vida e do seu corpo, deve ou não ser mandada para a prisão? Deve ou não ser ajudada a tomar a melhor decisão, num meio clínico competente, que a apoie e aconselhe dentro dos prazos legais? Ou devemos deixar a vantagem das clínicas e conselhos de luxo aos que têm dinheiro e educação e competência para os pagar e solicitar? Como é possível que não se entenda que o aborto clandestino é um problema de classes sociais e de falta de poder e não um reduto moral? A moral pertence a quem comete os actos e aos juízos de valor que esses actos justificarem, não pode nem deve ser uma moral por decreto e tipificada pela religião ou o Código Penal. O desvelo que a lei agora colocou na protecção deste pai biológico, devia ser exercido quando a mãe ficou grávida? Sim? Não? Talvez? Nesse momento, o MP ainda não pode obrigar um pai a perfilhar um filho por nascer, ou fazer testes de DNA. O que quer dizer que a lei só pode substituir-se aos cidadãos e aplicar-se quando falharam os indicadores morais, as resoluções íntimas. A lei vem quando falha o resto, quando falha a protecção, quando falha a decisão. No caso do aborto criminalizado, a lei pretende substituir a protecção e a decisão pela condenação e a punição, a lei pretende impor uma sanção num território físico e moral que não lhe pertence e onde só deve entrar em situações terminais. A lei não está antes dos cidadãos, está acima deles. As mulheres têm de deixar de ter medo.
Clara Ferreira Alves
Expresso, 27/01/2007