FACTOS
No dia em que Humberto Delgado foi homenageado no Panteão Nacional, recordamo-lo. Artigo publicado na revista Pública, em 14 de Maio de 2006. Os acrescentos, em parêntesis rectos, são correcções à versão original. A foto é da Fundação Humberto Delgado.
Que homem é este, que ainda hoje inflama a voz e o olhar de quem o conheceu?
Sobre ele, como político, já quase tudo está dito. Que era o general "sem medo", que estava disposto a morrer pela liberdade, que durante a campanha eleitoral de 1958 atirou fogo aos brandos costumes do país e criou nele a esperança de uma liberdade que só viria 16 anos depois.
No entanto, sobre Humberto Delgado, o homem, pouco se sabe.
Como era no trato, quais os seus hábitos, de que gostava de conversar, que relação tinha com a família? Tal como ajudam a concluir os testemunhos que se seguem, Delgado, o mito, talvez seja mesmo um mito. O homem corajoso, que não se rendeu a uma carreira diplomática de excepção ou a um exílio político dourado e, na urgência do combate, deu de caras com a morte às portas de Olivença, tem tanto de verdade como o Delgado homem, nascido em Brogueira, Torres Novas, há precisamente cem anos, a 15 de Maio de 1906.
Sobre ele, como político, já quase tudo está dito. Que era o general "sem medo", que estava disposto a morrer pela liberdade, que durante a campanha eleitoral de 1958 atirou fogo aos brandos costumes do país e criou nele a esperança de uma liberdade que só viria 16 anos depois.
No entanto, sobre Humberto Delgado, o homem, pouco se sabe.
Como era no trato, quais os seus hábitos, de que gostava de conversar, que relação tinha com a família? Tal como ajudam a concluir os testemunhos que se seguem, Delgado, o mito, talvez seja mesmo um mito. O homem corajoso, que não se rendeu a uma carreira diplomática de excepção ou a um exílio político dourado e, na urgência do combate, deu de caras com a morte às portas de Olivença, tem tanto de verdade como o Delgado homem, nascido em Brogueira, Torres Novas, há precisamente cem anos, a 15 de Maio de 1906.
Em casa, contudo, não se sabia de nada. Nem do que era a sua carreira, nem do que viria a ser a sua desgraça. "Quando entrava em casa, era apenas o pai, não falava de assuntos profissionais, apesar de eu ter uma vaga noção de que o que ele fazia lá fora era muito importante", recorda Iva Delgado. A teoria dele era a de que a família tem de estar reunida às refeições para conviver o mais possível. "Dava-nos muita atenção nessas ocasiões", prossegue a filha, "e contava histórias, que ainda hoje se contam na família, onde misturava a realidade com a ficção". Eram histórias que punham a ridículo a natureza humana, porque, diz Iva, "para ele nunca as coisas eram o que eram, ia sempre além do óbvio".
Do Canadá, a família seguiria para Washington, onde Delgado representaria Portugal junto da NATO (entre 1952 e 1957). É desse tempo que Iva, muito criança, melhor se lembra. Da vida em Lisboa, na rua Filipe Folque, ficou-lhe pouca coisa. O pai recebia "pessoas do meio militar, do meio diplomático, da aviação". Mas, acrescenta, "não era um grupinho que fosse lá a casa com frequência, eram visitas de circunstância, que ele, por diversas razões, precisava de alimentar".
Ao período português pertence, também, um traço romanesco da personalidade de Delgado. Tinha-se casado em 1930 com um mulher oriunda da aristocracia de Leiria, que muito cedo fora viver para Lisboa e a quem, no dizer da filha Iva, cantava as canções de Charles Trenet, estrela da canção francesa a partir do fim dos anos 30. É um período de uma certa ingenuidade, ainda, de que é prova o facto de os lençóis e algumas cortinas que levou da vida de solteiro para a de casado terem aviões bordados, tal era a paixão que nutria pela aeronáutica.
No pouco tempo que lhe sobrava da vida profissional, escrevia longos artigos para a imprensa. "Imagem de marca da minha infância é a minha mãe a dactilografar numa Hermes Baby, muito pequena, e ele a passear-se pelo escritório lá de casa e a ditar. A minha mãe dactilografava lindamente e ele achava que ela era a melhor secretária que poderia ter". Os escritos ocupavam-lhe noites inteiras. [No original de um] artigo para a revista "Defesa Nacional", fez uma vez uma nota, na qual explicava que acabara de chegar de uma recepção e continuara a escrever, com os colarinhos ainda a apertarem-lhe o pescoço. "Ele é um compulsivo, sacrificava muito as horas de sono em favor da escrita", conta Iva Delgado.
Já em Washington, apura a veia de genuíno relações públicas e corta definitivamente com o regime e os hábitos portugueses. Proíbe a família de falar de "doenças, criadas e crianças" nas recepções que organiza em casa. E avisa a mulher para não se vestir de preto, "porque isso é à moda das mulheres portuguesas", relembra a filha, a quem ele, certa vez, disse isto: "Sabes qual é a grande diferença entre um general americano e um general português?: o general português quando tem um furo chama o impedido [soldado raso] e pede-lhe para trocar o pneu. O general americano faz como eu, arregaça as mangas e troca ele mesmo o pneu".
B.H.