segunda-feira, 2 de abril de 2007

“Como me parecem gastos os usos deste mundo”

Um homem com uns 40 anos pede cigarros no cimo da escadaria que conduz ao Museu. E mete conversa. “Isto parece uma coisa bonita, deve estar muita gente da televisão”. Os carros passam na rua e abrandam na esperança de perceber as razões de um entra e sai invulgar ou deitar olho a uma celebridade qualquer que tenha acorrido. Num café de esquina, durante a tarde, uma mulher de meia-idade comenta: “Parece que só se entra por convite. Mesmo que tivesse, não ia”.

Quando se fala com quem há anos organiza a ModaLisboa (MLx) e nela trabalha (é da última edição, que decorreu entre 8 e 11 de Março, no Museu de História Natural, que falamos), encontram-se dois discursos sobre a tangibilidade do mais importante acontecimento de moda em Portugal. Que está aberta a todos e que a prova são as centenas de pessoas que assistem aos desfiles; que não é um sítio democrático, até porque quanto mais elitista a moda for mais se valoriza o sonho que vende.

É destas insanáveis contradições que a MLx, financiada pela Câmara Municipal e por fundos da União Europeia, não se consegue livrar: ser de facto elitista e abrir portas só à imprensa e aos empresários, dizer-se elitista e abrir-se aos socialites mais depauperados, não ser elitista e encontrar modo de acolher quem quiser ir, ter toda a gente por lá e deixar de ser chique, querer manter-se chique e ser vista como um evento de tias e gente estranha.

Por estes dias, numa entrevista ao Diário de Notícias, Eduarda Abbondanza, a todo-poderosa responsável pela MLx, assumia que se trata de um evento social, embora destacasse mais a sua dimensão comercial. A opinião de quem está por fora é diversa: o social, ou cor-de-rosa, bem instigado por revistas, ganha aos pontos.

Há ali moda, roupa para ser fotografada e apresentada nas páginas da imprensa especializada, investidores à espreita e muito trabalho de modelos, agências, estilistas, produtores de moda, maquilhadores, cabeleireiros, fotógrafos. Mas quem frequenta o sítio continua a jactar-se e a socorrer-se de um limitadíssimo glamour à portuguesa e é isso que a cidade e o País vêem.

No último dia desta MLx (que, pela primeira vez, se associou ao Portugal Fashion, do Porto, para formar a Semana da Moda portuguesa), coube ao estilista Nuno Baltazar assumir a teatralidade da coisa. Pegou em “Hamlet”, pela voz do actor João Reis e numa encenação de Ricardo Pais (de há seis anos), e passou-o em off, durante o desfile. A famosa mulher do actor, Catarina Furtado, também desfilou, de peruca ruiva e olhos muito pintados. “Como me parecem velhos, inúteis e gastos os usos deste mundo”, ouviu-se. Fora do contexto original, foi como se a frase de Shakespeare quisesse falar para aquela sala de desfiles, pintada de preto e de branco. Um desabafo sentido, lá do século XVII para os de agora. B.H.

Os desfiles da Moda Lx podem ser acompanhados na Fashion TV até 03 de Abril (sinal codificado) e na RTP 1 até 07 de Abril (sinal aberto).

Artigo publicado na revista "Obscena", Abril 2007.
Foto:
José Luís Neves.