quinta-feira, 12 de abril de 2007

Nada mais poderia ser testado nem como mentira nem como verdade

"Combateremos a Sombra", novo romance de Lídia Jorge. Excerto:

Domingos Fiori encarou o irmão, apontou-lhe o dedo - «É o que te digo, irmão, isto que o Osvaldo conta não é um facto isolado - As pessoas não sabem mais onde começa a sua própria vida e onde termina a vida dos outros. Eu não te falei do caso daquele estudante paranóide? Pois falei...» E Domingos contou como certo paciente, estudante de Medicina, lhe dizia que solhava com uma parede branca onde escrevia a noite inteira, e o que dizia escrever era uma mensagem incrível - Queremos Mais Mentiras, Queremos Mentiras Novas ou Queremos Novas Mentiras... Com algumas variantes, era essa mensagem que ele dizia escrever sem cessar durante toda a noite, ao longo da parede. De manhã, ao acordar, doía-lhe o braço de tanto escrever a mensagem das mentiras. E o mais velho dos Fiori, o menos fininho, explicou - «Pois vejam bem que há uns dias, estava eu a parquear o carro na 24 de Julho, levantei a cabeça e deparei com uma pichagem imensa, e a mensagem era exactamente igual - QUEREMOS MENTIRAS NOVAS... Lá está, pode-se confirmar...»

«Mas como?»


«Na minha ideia, o estudante leu na parede, gostou, apropriou-se, e fez a coisa dele...» - E Domingos riu imenso, tal como o irmão, embora os dois Fiori continuassem a interpretar o fenómeno de modo oposto. Fosse como fosse, estavam de acordo num aspecto - Caminhava-se para um ponto onde nada mais poderia ser testado nem como mentira nem como verdade. O núcleo da capacidade de discernimento, atingido. A própria prática e eficácia da análise estavam em perigo. Eles
sentiam, eles farejavam esse plano inclinado da análise. Uma alteração significativa. E o quotidiano aí estava a demonstrá-lo.

«Queremos mentiras novas!»
- repetia Domingos, com gravidade.
«Caramba, até eu tinha vontade de me apropriar duma coisa dessas, quanto mais o estudante de Medicina! Isso não é uma frase, isso é a divisa dum século inteiro. (...)