sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Miau-miau nas ruas de Lisboa

Fomos à procura da nova droga que invadiu a cidade. É barata e legal. E vende-se em lojas. O efeito é parecido ao da cocaína. Há quem lhe chame fertilizante para plantas, mas é só para disfarçar, conta Bruno Horta.
 

A vida de Pedro não tem nada de original. Sai à noite, bebe uns copos, fuma, ouve música, dança e experimenta drogas. “Live fast, die young”, poderia ele dizer, aos 23 anos. Em 2009 descobriu a mefedrona, um estimulante também conhecido por miau-miau, blow ou bloom. Cheira-se para esticar a noite, acelerar a música, fazer fluir a conversa. E ser o centro do mundo. Um amigo falou-lhe em fertilizante para plantas, o nome-segredo da mefedrona, e Pedro disse que sim. “Já tinha consumido erva e cocaína, esta era apenas mais uma.” Cheirou a dose que lhe meteram à frente e gostou. “Fazia arder a narina, mas o efeito era parecido ao da coca. Isto dá energia, mas não é uma coisa exagerada, uma pessoa sente-se um pouco melhor neste mundo de merda.”

Os médicos sabem bem como é. Efeitos comuns: excitação, diminuição da sensação de cansaço, empatia. E a seguir: dificuldades de memória, falta de apetite, depressão. Cereja no topo do bolo: vontade de consumir mais. É legal em Portugal, embora prestes a ser incluída na lista de substâncias reprimidas. Existe em pó ou comprimidos de cor branca e vende-se em pequenas embalagens de plástico nas smart shops, lojas de drogas legais.

O miau-miau “já começa a ser uma moda em Portugal, sobretudo entre os jovens que gostam de experimentar novas sensações”, explica o médico João Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT, que em breve será extinto pelo Governo para passar a Serviço de Intervenção dos Comportamentos Aditivos e Dependências). “A mefedrona tem grande projecção neste momento e é muito consumida em Lisboa mas, mal seja ilegalizada, será substituída por outras substâncias semelhantes”, acredita a psicóloga Helena Valente, voluntária do projecto Check In, da Agência Piaget para o Desenvolvimento.

O Check In actua nas freguesias de São Paulo, Santa Catarina, Santos-o-Velho e Encarnação, ou seja, no Bairro Alto, na Bica e no Cais do Sodré – as zonas onde os lisboetas aquecem antes de seguirem para as discotecas. Helena Valente está lá duas vezes por semana: instala uma banca com folhetos e esclarece quem passa. “Pelo contacto com as pessoas, sou levada a concluir que há cada vez mais gente a experimentar mefedrona, sobretudo adolescentes e jovens adultos.” Fora esta percepção empírica, não há ainda dados objectivos, de acordo com o presidente do IDT.

O World Drug Report 2011, das Nações Unidas, informa que a mefedrona tem como nome químico 4-methylmethcathinone. É uma substância psicoactiva da família das catinonas (semelhantes às anfetaminas). “Apareceu pela primeira vez no mercado negro por volta de 2007 como alternativa legal às anfetaminas ou cocaína”, lê-se. No entanto, sublinha João Goulão, “esta e outras drogas novas representam em Portugal uma ínfima parte das preocupações”. “A heroína, a cocaína ou o ecstasy continuam a ter um peso incomparavelmente maior.”

Muitas vezes é a indústria farmacêutica quem descobre as drogas sintéticas, no decorrer de investigações rotineiras. Os resultados publicados em revistas científicas são depois reproduzidos por laboratórios ilegais. E o que poderia ser transformado em medicamento passa a droga recreativa.

Tanto quanto se sabe, o miau-miau chega a Lisboa depois de embalado na Europa. O conteúdo provém da China, da Índia e dos países de Leste. Estes últimos “têm uma tradição de maior produção local de substâncias sintéticas, porque sempre tiveram um controlo fronteiriço muito apertado”, esclarece o presidente do IDT. 

Isto quer dizer que a mefedrona é apenas uma parte de um todo a que os ingleses chamam legal highs, ou “pedras” legais. Explica o livro História Elementar das Drogas (2004, edição portuguesa) do filósofo espanhol Antonio Escohotado: “A guerra às drogas ressuscita com grande virulência nos anos 80, uma era marcada pelo binómio Reagan-Tatcher.” Enquanto os governos e os média representavam a cocaína e a heroína como uma praga, novas substâncias sintéticas eram feitas em laboratório para as substituir. “Estas substâncias representam a resposta do mercado negro ao recrudescimento da cruzada, uma resposta que em menos de uma década inventará novos sucedâneos mais potentes, mais baratos e quase sempre mais tóxicos.” Assim aparece o famoso ecstasy (MDMA), associado às festas de música electrónica do início dos anos 90. E daí até à mefedrona foi apenas um passo.

Há um ano, na sequência de 37 mortes atribuídas ao bloom no Reino Unido e Suécia, o comité científico do Observatório Europeu da Droga (agência da União Europeia com sede em Lisboa desde 1995) pediu ao Conselho da União Europeia que ilegalizasse a mefedrona, o que este fez. Alguns países adoptaram a recomendação, mas tal ainda não aconteceu em Portugal. “Mudanças na lista de substâncias proibidas ou sujeitas a controlo obrigam a alterar a lei da droga e isso implica a Assembleia da República”, contextualiza João Goulão. “Este processo estava em curso quando o governo anterior caiu e aguarda-se agora novo agendamento para discussão e votação.” Até lá, é legal. E segundo explicou à Time Out Lisboa o gerente de uma smart shop, é de longe o produto mais vendido nestas lojas.

Desde 2008, as smart shops têm aparecido como cogumelos pelas ruas da capital. A Magic Mushroom, no Bairro Alto, foi a primeira e já tem duas filiais. A seguir veio a Freemind, em Santos, que até faz entregas ao domicílio. Na semana passada abriu outra, Wonderland, junto à Praça das Flores. Se um grama de cocaína pode custar cerca de 60 euros no mercado negro, um grama de bloom não ultrapassa os 45 nas lojas. “A mefedrona torna-se apetecível por causa do preço, sim, mas também porque se vende abertamente em lojas, o que evita ter de se frequentar os circuitos clandestinos da cocaína”, diz Helena Valente, chamando a atenção para um “falso sentimento de segurança”: “Não só as lojas não têm a certeza de todos os aditivos que estão dentro da embalagem, como nem sempre sabem dizer às pessoas quais as doses certas” (entre 15 a 80 miligramas pela “via snifada”, aconselham os folhetos informativos do projecto Check In).

Pedro admite “uma certa dose de irresponsabilidade” ao cheirar bloom, mas diz que “nos ambientes normais de festa” não tem “problemas nenhuns em consumir”. “Uma pessoa às vezes tem de tomar estas coisas para se esquecer um bocado da vida.”

Mesmo antes de a proibição começar a ser falada, as smart shops identificavam a mefedrona como “fertilizante para plantas impróprio para consumo humano” – assim contornando qualquer acusação de ilegalidade. Agora, metem autocolantes sobre as embalagens com a frase “mephedrone free”, o que é interpretado como apenas um truque comercial, sem fundo de verdade. De resto, mesmo que a lei mude, nada de importante irá ser alterado. “Isto é um jogo do gato e do rato”, concede João Goulão. “Depois de uma substância ser incluída na lista negra, os laboratórios introduzem um radical qualquer na molécula e já estamos perante uma nova substância que não aquela que acaba de ser proibida.”

O presidente do IDT pensa que uma das soluções é ter tabelas de proibição com “grandes grupos de substâncias e estruturas moleculares aparentadas”, em vez da designação concreta das drogas. A responsável pelo Check In inclina-se para defender a despenalização.

(originalmente publicado na revista Time Out Lisboa de 9 de Novembro de 2011)