quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Uma linguagem “queer” que seja nossa

Tiago Cadete, Mariana Tengner Barros e Cláudio Filipe Vieira (foto de Nuno Alexandre Ferreira)

Há momentos de prenúncio. O espectáculo "Mente", que cerca de 200 pessoas viram na madrugada desta quarta-feira na discoteca Finalmente, em Lisboa, é, sem favor, o caso. 

“Mente” propôs-se levar ao mais conhecido palco do travestismo lisboeta um conjunto de artistas do teatro e da dança que, individualmente, em actuações de seis minutos, subvertessem a linguagem dos travestis e questionassem as noções de género. Ora, foi isso mesmo o que aconteceu. 

Em rigor, “Mente” foi (e é, porque os organizadores querem repetir a ideia noutros espaços nocturnos) um momento-luz na cidade. Pode tudo continuar na mesma que uma coisa ficou ontem à noite a saber-se: a linguagem “queer” começa a ser assimilada pelos artistas portugueses, o que significa que falta pouco para chegar ao país. Há até motivos para desconfiar que essa linguagem já é conjugada à portuguesa: incorporada e relida.

O dramatismo dos travestis de meia-idade, mais os seus trajes solenes e os seus modos revoltosos, deram lugar, por uma hora, a artistas quase todos nascidos no fim da década de 70, festivos e despreocupados, interessados em celebrar o pós-tudo: o pós-moderno, o pós-dramático, o pós-porno, o pós-gay. Artistas “queer” indiferentes ao peso de quaisquer categorias, enchendo as suas ideias com referências da cultura de massas, lida a partir daqui.

Três momentos, entre outros possíveis: a coreógrafa Tânia Carvalho com uma “Canção do Engate” desconstruída e esconjurada (diz-se que gritada); o revivalismo dos anos 90 do "performer" Rogério Nuno Costa (o novo revivalismo, evidentemente); e, número que fechou, Maria Bakker, personagem “trans” do actor Gonçalo Ferreira de Almeida, a lembrar que é preciso que tudo mude para que tudo fique sempre na mesma.

Como fica dito, “Mente” é um momento-luz, não um momento-fractura. O espectáculo foi apresentado pelo principal travesti português, Deborah Kristal, anfitrião habitual do Finalmente. Entre o velho e o novo não há, aqui, cisão; há uma ponte, que é o legado.