«Os média dão do surf uma imagem de riqueza, sexo e vaidade. Mas eu passei dez
anos no guincho com a comunidade surfista, e vi que os verdadeiros surfistas
são pessoas que romperam com a sociedade. Não têm dinheiro. Quase não comem.
Levantam-se todos os dias de madrugada para ir surfar. Ficam horas no mar, à
espera das ondas, em contemplação, sozinhos no frio. Mas ao mesmo tempo, quando
a onda vem, há uma violência única de entrega a uma força incontrolável da
natureza. Só saem da água quando estão totalmente esgotados, destruídos. No dia
seguinte fazem o mesmo. O mar do Guincho é o mais inclemente, rejeita aqueles
que não têm a humildade de aceitar esta violência. Quando conheci o Pedro Sousa,
campeão júnior de surf, conheci este outro lado. E um dia apercebi-me que
tinham um segredo. Havia um lugar no topo da serra onde às vezes iam passar a
noite. Eram as ruínas do Convento dos Capuchos. O Pedro Sousa não me sabia
explicar porque se sentiam atraídos por aquele sítio. Um dia, também eu subi a
serra, saltei
o muro do convento, e sentei-me no claustro, preparando-me para passar ali a
noite. Veio uma coluna de nevoeiro, das que vão passando no topo da montanha, que num segundo
fez desaparecer o claustro, e depois o próprio convento. Na confusão das portas e
das janelas escondidas, vi os monges nas suas tarefas quotidianas, abstraídos da minha
presença, mas totalmente absorvidos numa oração interior. Tão rapidamente como veio, o
nevoeiro levantou-se e desapareceu, levando os monges consigo. Eu sabia que o
Pedro Sousa era um desses monges. Foi assim que começou o Deste Lado da Ressurreição.» Joaquim Sapinho