quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Uma Noite Muito Pouco Urgente

Reportagem na urgência do Hospital da Covilhã, publicada na revista Sábado de 26 de Outubro (originalmente acompanhada por fotos de Sérgio Azenha).

Quando não há doentes, as enfermeiras do serviço de urgência lêem revistas cor-de-rosa e os médicos dormem ou vêem televisão. Mas depois há as noites agitadas em que, cansados ou não, eles precisam de tomar decisões muito depressa.

São dois amigos. Um entra pelo próprio pé, acompanhado por um cheiro forte a álcool. "Tenho medo de ter um vidro aqui espetado", diz a uma enfermeira, apontando para o peito, que a camisa aberta revela. O outro chega no carro de uns conhecidos, mas vai logo para a maca. Tem a cara e a roupa em sangue. Parece inconsciente.

São 3h da manhã de um sábado de Se­tembro e os dois homens acabam de entrar nas urgências do Hospital da Covilhã - que, com o Hospital do Fundão, forma o Centro Hospitalar da Cova da Beira (CHCB).

Mais tarde é que se saberá o que lhes aconteceu. Estavam numa das mais movi­mentadas discotecas da cidade quando urna mulher se cruzou com eles. Resultado: por causa dela, começou uma discussão com um terceiro homem que, no calor do mo­mento, terá partido um copo na cara da­quele que repousa agora na maca. O da camisa aberta ainda tentou ajudar o ferido, mas só conseguiu cortar-se nos vidros, em­bora com menos gravidade. Olha o corre­dor vazio das urgências e suspira. "Ai, mi­nha mãe!" Os amigos são suturados e lá voltam para casa.

Este caso é o único a agi­tar as urgências. Pouco mais acontecerá nes­sa noite.

Os enfartes do miocárdio, os acidentes vasculares cerebrais e os problemas respiratórios são os que aparecem mais vezes durante a madrugada. Além, claro, de bêbe­dos e de vítimas de acidentes de viação ve­rificados sobretudo na A23, que atravessa a Beira Interior. Nesta madrugada, não se passa nada. Puro acaso, garantem enfer­meiros, médicos e seguranças. Até porque, como o serviço de urgência do Hospital do Fundão (situado a 18 quilómetros de dis­tância) não tem condições para tratar a maior parte dos doen­tes, estes são enviados para a Covilhã. Na realidade, de servi­ço de urgência o Fundão prati­camente só tem o nome, por­que o que existe mesmo é uma espécie de serviço de atendimento perma­nente, em boa medida semelhante ao dos Centros de Saúde.

O Hospital da Covilhã atende, de acordo com João Gomes, director clínico e médico obstetra, cerca de 130 mil casos urgentes por ano. Mas as instalações, garante fonte do hospital, foram construídas a pensar em apenas 30 mil, o que não tem necessaria­mente influência sobre a qualidade dos cui­dados de saúde ali prestados, asseguram os responsáveis do hospital.

Os dias costumam ser caóticos. Sobre­tudo a segunda-feira de manhã, que é quan­do despertam todos os males do mundo. Um clínico geral avança uma explicação: trata-se de falsas urgências, de ‘pseudodoentes’ à procura de atestados médicos para jus­tificar faltas ao trabalho. É uma hipótese, mas não explica toda a afluência.

Os casos sérios também enchem os corredores de macas e acção. Como numa série de televisão passada nas urgências de um hospital americano? Não é bem assim, mas quase, respondem enfermeiros e médicos.

As noites, em contrapartida, costu­mam ser mais calmas. E esta noite fria de Se­tembro não é excepção.

Teresa Santos tem 52 anos e é médica há mais de 20. Especializou-se em medicina interna. A meio da madrugada já leva mais de 17 horas de trabalho. Além das consul­tas durante o dia, foi destacada, esta sema­na, para as urgências, assumindo o papel de chefe de equipa, ou seja, o de coordena­dora dos profissionais de serviço. "Não consigo dormir de dia, por isso, quando faço o turno da noite, chego a ficar acordada 24 horas seguidas", explica. O segredo para aguentar é dormir muito na véspera e mui­to no dia a seguir.

Ao longo dos anos, ganhou experiência suficiente para poder garantir que está pron­ta para qualquer emergência. "Em primei­ro lugar, o facto de ser chefe de equipa si­gnifica que, se entrar aqui uma pessoa em estado muito grave, tenho de ser eu a to­mar decisões", explica. "Em segundo lugar, consigo raciocinar muito depressa e con­centrar-me na situação clínica do doente, esteja ou não cansada."

De resto, que não tivesse um car­go de chefia, o seu papel, no hospital e na urgência, seria sempre importante. "Os mé­dicos internistas são imprescindíveis, por­que, como trabalham o corpo humano como um todo, fazem a ponte entre as vá­rias especialidades", afirma.

São 4h e Teresa Santos decide ir descansar. Os médicos têm ali perto um cubículo, com cama, mesa-de-cabeceira e nenhuma janela. Um clínico geral aproveita, faz uma pausa para fumar e ir à copa espreitar o fil­me de acção que passa na SIC. Os enfermei­ros vão ao mesmo sítio comer qualquer coi­sa. E queixam-se da qualidade das refeições rápidas que uma empresa fornece ao hos­pital em pequenas caixas de cartão: iogur­tes, sumo e sanduíches que não sabem a nada.

No corredor principal das urgências fica um gabinete onde outras enfermeiras se entretém a navegar na Internet e a ler a Ca­ras, a Lux e a Máxima. Eles preferem o Jor­nal do Fundão e o Record. Fala-se da vida e de noites de sono perdidas em trabalho. Al­guém diz, a brincar: "O patrão paga-nos para não fazer nada. Não vamos buscar clientes à rua, eles não vêm, não há traba­lho." De repente, aparece um bombeiro com comichão na barriga. "Senti aqui uma pi­cada ontem à tarde." O intervalo tinha aca­bado.
B.H.

Cova da Beira à espera da gripe das aves
As urgências do Centro Hospi­talar da Cova da Beira estão pre­paradas para o caso de, no pró­ximo Inverno, haver uma pan­demia do vírus da gripe das aves, o H5N1. Quem o garante é o director clínico do hospital, João Gomes. O material de protecção para médicos já foi com­prado: luvas, máscaras, visei­ras, batas, aventais e botas – mais ou menos o mesmo que é utilizado para lidar com doen­tes com graves problemas imu­nitários. Dentro em pouco, os casos da gripe sazonal (a que aparece todos os anos) deverão ser usados para ensaiar novos métodos de organização das urgências, que passam a ter uma zona especial de atendi­mento. Em caso de alerta, defende João Gomes, é preciso ter as equipas já treinadas.