sexta-feira, 30 de março de 2007

Primeira tradução portuguesa de Laxness publicada esta semana

Novidade absoluta em Portugal é o livro "Gente Independente", publicado esta semana pela Cavalo de Ferro. É a primeira vez que um romance do escritor islandês Halldór Laxness, Nobel da Literatura em 1955, é traduzido para português. A tradutora é Gudlaug Rún Margeirsdóttir e a revisão de Jorge David e de Maria João Branco. A primeira parte de "Gente Independente" foi publicada pela primeira vez em 1934.
O excerto abaixo bem poderia ser uma descrição do Alentejo nos anos 50.


Este romance de Laxness, Nobel da Literatura, tem lugar na Islândia, no início do século XX, numa sociedade de servidão e num país com uma natureza inclemente. É a saga de Bjärtur, um homem obstinado, inquebrável e inesquecível.
Bjärtur vive no limiar da auto-suficiência e conta apenas com a sua obstinação e força interior, rejeitando qualquer caridade. Vive num vale com reputação de assombrado, só confia no seu rebanho, no seu cão e no seu cavalo. Se alguém toca o seu coração é Asta, a sua filha, mas tudo muda quando ela o desilude e magoa os seus enraizados princípios de honra...
A determinação de Bjärtur e a sua luta pela independência são genuinamente heróicas, assustadoras e chegam a ser cómicas.
«Gente independente» é uma história épica, ao mesmo tempo trágica e bela. É uma imensa viagem por um mundo onde as almas são levadas até ao precipício e só os mais duros resistem. Um romance imbuído de sentido de humor, de uma crueldade que roça o violento e de uma profunda humanidade. Um romance que continua a comover gerações de leitores.
[da contra-capa do livro]


Halldór Laxness nasce em 1902 e torna-se lenda no seu próprio tempo. Em 1955 é galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Logo em 1927, um crítico escreve sobre ele: «Finalmente! Finalmente! A Islândia tem um novo grande escritor.»

A partir daí seguem-se várias obras-primas: Satka Valka, «Gente independente», «A luz do mundo», «O sino da Islândia», «A central nuclear», «Os felizes guerreiros», «Os peixes podem cantar», «Paraíso reclamado», «Sob o glaciar» e Guosgjafapula. Para além dos romances, Laxness escreveu também contos, ensaios, teatro, poesia e vários romances autobiográficos. A sua obra está traduzida em mais de 45 línguas e publicada em mais de 500 edições, com enorme sucesso em todo o mundo, nunca antes editada em Portugal.

Halldór Laxness é um verdadeiro mágico com as palavras. Ele detém uma surpreendente gama de estilos e temas: nenhum dos seus romances se assemelha. Laxness consegue sempre surpreender o leitor, é detentor de uma imaginação inesgotável e de recursos técnicos surpreendentes. É muito feliz na expressividade e na caracterização brilhante das personagens. No seu percurso, Halldór Laxness nunca se cingiu apenas a um ideal ou crença. Inicia a sua carreira enquanto católico, depois torna-se socialista, e mais tarde perde o interesse por todas as doutrinas - excepto talvez pelo Taoismo.

Laxness falece aos 96 anos, consagrado como um dos maiores escritores de sempre.
[da badana do livro]


No prado os rapazes já não se mexiam mais, há muito que tinham perdido toda a força dos seus braços, limitavam-se a bater com as suas foices contra a relva molhada numa espécie de imbecilidade interminável, originando apenas um pequeno jorro de água, uma talhada de terra, ou no máximo o corte de alguns talos, a esta hora Ásta Sóllilja terá certamente adormecido em frente ao fogão esquecendo-se de tratar de nós. Era uma visão espectacular quando a avistavam com a marmita nos limites do campo.
A refeição no prado era, como toda a verdadeira alegria, mais bela quando ainda existia só na expectativa. Ementa mais rígida que o peixe salgado e o pão de centeio, as papas aguadas e os enchidos azedos, não se encontrava em reino algum, para não falar da chuva que constantemente caía para dentro desses pratos enquanto comiam, pois o agricultor não era o tipo de pessoa que se enternecia perante ninguém, mesmo que tanto o merceeiro como o gerente da cooperativa tivessem ultimamente disputado a sua simpatia. O peixe salgado fedia intensamente na chuva, e esse cheiro pegava-se durante horas seguidas às narinas, às roupas, às mãos. E nunca as crianças ansiavam tanto por comida como quando terminavam a sua refeição debaixo da pilha de feno.
Fosse qual fosse o tempo, Bjartur afastava-se sempre das outras pessoas quando acabavam de comer, deitava-se em cima de um feixe de feno com a sua boina a tapar-lhe a cara e adormecia num instante. Assim que se voltava durante o sono caía de cima do feixe, às vezes para dentro de uma poça, e acordava de imediato, isso agradava-lhe imenso. Considerava que era suficiente um homem dormir quatro minutos durante o dia, e ficava de mau humor caso dormisse mais. As mulheres enfiavam-se debaixo da pilha assim que acabavam de comer, e a seguir começavam os calafrios, pois estavam sentadas na relva molhada, e logo se levantavam com as suas mãos dormentes, formigueiros nos pés, à procura das suas ferramentas. E se Bjartur as ouvisse queixarem-se da humidade, respondia-lhes, que cobardes míseros eram aqueles que se importavam com o tempo molhado ou seco. Não conseguia entender por que razão tais indivíduos tinham vindo ao mundo. Não passa de mas uma maldita excentricidade isso de querer estar seco, dizia, tente estado molhado mais de metade da minha vida, e como se vê nunca me senti mal por isso.
[fragmento do livro; página 226]