A entrevista decorreu à margem do Fórum Mundial da UNESCO sobre Cultura e Indústrias Culturais, que se realizou em Monza, Itália, em Setembro de 2009. Mona Almunajjed foi uma das oradoras convidadas.
Doutorada em sociologia pela Universidade George Washington, EUA, é uma progressista muito cautelosa. Trabalhou durante 15 anos para agências da ONU em programas de ajuda ao desenvolvimento nos países árabes e é autora de livros como Women in Saudi Arabia Today (1997) e Saudi Women Speak (2006). Vive em Riade, Arábia Saudita, e é actualmente consultora do think tank árabe Booz & Co.
Como é que se tornou consultora da ONU: sentiu-se discriminada por ser mulher e teve necessidade de intervir para mudar as coisas?
Só para enquadrar, devo dizer que tenho um doutoramento em sociologia, com especialização em desenvolvimento nos países árabes. A minha tese de doutoramento é sobre as mulheres na Arábia Saudita. Tenho trabalhado sobre estes temas porque nasci num ambiente de discriminação contra as mulheres. A sociedade árabe é patriarcal e as mulheres sofrem devido a isso. O Islão dá-nos todos os direitos. Temos direitos iguais aos dos homens, talvez não similares, mas iguais. Mas há dois problemas. Primeiro, a interpretação do Corão, que varia de país árabe para país árabe. Segundo, a operacionalização das leis e regulamentos, que não está a ser feita de forma eficiente para permitir a defesa das mulheres. Mesmo assim, acho que a vida das mulheres árabes está a mudar para melhor.
Incluindo na Arábia Saudita?
Claro. O ensino tem tido um papel decisivo. Mulheres com mais formação académica pensam mais e melhor, são mais exigentes, querem viajar, utilizar a internet. Só assim têm oportunidade de conseguir lugares importantes no mercado de trabalho, em empresas públicas e privadas.
Normalmente, só conseguem lugares de poder intermédio, nunca de liderança.
Está a falar da Arábia Saudita? Não sei se assistiu à minha palestra…
Disse, por exemplo, que as mulheres têm um papel muito importante na Arábia Saudita, apesar de o Ocidente pensar o contrário.
Exactamente. O Ocidente tem uma ideia errada sobre nós – as mulheres árabes, em geral, e as da Arábia Saudita, em particular. Pensam que temos um estatuto secundário na sociedade, que somos ignorantes, que não temos estudos, que estão submetidas aos homens. É errado. Estudei e trabalhei no Ocidente, vivi nos EUA, e encontrei quem ficasse espantado por eu falar três ou quatro línguas. Diziam-me até que não pareço nada árabe, ou muçulmana, ou saudita. O que é isto? É um estigma negativo sobre nós. A culpa é de ambas as partes: nossa, países árabes, por não nos expormos mais, sobretudo nos media; e vossa, por não quererem saber mais sobre nós e se fecharem numa visão preconceituosa. Acho que não há problema nenhum em usarmos habaia (túnica negra). Pelo contrário. Faz parte da nossa tradição. A nossa prioridade não deve ser a de eliminar a habaia ou ter carta de condução, a nossa prioridade como mulheres tem de ser a de conseguir um papel importante no desenvolvimento do nosso país, na economia, no emprego, na educação.
Como é que uma sociedade patriarcal aceita que as mulheres passem a ter esse papel?
Faz parte do Islão. A sunna [palavras de Maomé; fonte da lei islâmica, tal como o Corão] diz que a instrução deve fazer parte da vida de qualquer pessoa, seja homem ou mulher. Há uma passagem da sunna que diz: “Procura o conhecimento, mesmo tenhas de ir à China”. Khadija, a primeira mulher do profeta, era uma erudita [terá vivido entre os anos 555-619]. Tivemos várias mulheres poetisas, não apenas homens. Na Idade Média europeia já estávamos a viver o nosso Renascimento, com conhecimentos científicos avançadíssimos.
E como é que explica que existam hoje tantas restrições na sociedade muçulmana?
Nos últimos 60 anos, estivemos expostos a inúmeras guerras. Não vale a pena detalhar, mas é óbvio que a guerra não ajuda nenhum país a desenvolver-se. Enquanto a Europa se desenvolveu nos últimos 60 anos, nós ficámos congelados. A minha mãe é libanesa e esteve sujeita à guerra de Israel contra o Líbano. Sei bem que a guerra é um assunto sério, que condiciona todas as oportunidades de desenvolvimento, quer para os homens, quer para as mulheres.
Por que razão não faz uma crítica forte ao seu país e à forma como as mulheres são tratadas?
Essa é a visão Ocidental. Estão sempre prontos para criticar. Aquilo que faço é uma crítica construtiva. Critico para construir, não para destruir. Tenho um papel muito activo na minha sociedade, já trabalhei com muitas mulheres, em várias partes do país, em programas de desenvolvimento.
Que lhe dizem elas?
Acho que as mulheres sauditas são das mais avançadas do mundo árabe. Têm personalidades muito, muito fortes, são muito inteligentes e têm uma mente muito aberta. Querem aprender e ter as suas próprias empresas.
Conseguem?
Cerca de 40 por cento da riqueza na Arábia Saudita está nas mãos de mulheres. As mulheres têm poder de compra e capacidade económica. A lei da sharia, baseada no Corão, diz há 1500 anos que, quando se casam, as mulheres não têm de usar o nome do marido, apenas o nome delas. Ele não tem direito ao dinheiro da mulher e ela pode ter as suas próprias contas bancárias, sem que ele tenha o direito de saber quanto é que ela tem na conta. Isto é a independência das mulheres e já a tínhamos muitos antes de esse conceito existir na Europa. Infelizmente, os regulamentos não têm sido aplicados de forma correcta e limitam algumas coisas.
E há o problema de as mulheres não terem acesso ao poder político.
Bem, na zona do Golfo Pérsico temos o Bahrain, o Koweit e os Emirados Árabes Unidos com mulheres em lugares de destaque na política, inclusivamente como ministras. Quando se diz que na Arábia Saudita elas não têm acesso ao poder político, é preciso ver que o país só existe desde 1932. Há quase 70 anos, não havia Arábia Saudita, era apenas a Península Árabe, com vários povos nómadas. As escolas para mulheres só começaram a existir em 1960. Portanto, só se passaram 40 anos. O que é que se pode fazer em apenas 40 anos? Muito pouco. Veja-se que na Suíça as mulheres só tiveram direito ao voto nos anos 70.
Em Portugal, só em 1974.
Está a ver? É preciso darem-nos tempo. As nossas universidades femininas começaram nos anos 70 e espalharam-se rapidamente na década de 80. Estamos a falar de uma sociedade beduína, uma sociedade que precisa de tempo para aceitar que as mulheres têm direito ao ensino e à participação.
O facto de as mulheres sauditas obterem graus académicos garante-lhes, depois, o acesso ao mercado de trabalho?
Sobre isso tenho números concretos: 85 por cento das sauditas trabalham no ensino público, seis por cento na administração pública, quatro por cento nos serviços públicos de saúde e cinco por cento no sector privado. Precisamos de mais, é certo. Temos cada vez mais mulheres com altas qualificações e não há vagas no mercado para elas. Porquê? É uma questão de tradição e interpretação [do Corão]. Eles não gostam que os homens e as mulheres trabalhem juntos. Além disso, há mais de oito milhões de imigrantes a trabalhar na Arábia Saudita que deveriam ser substituídos por sauditas. Tem sido seguida uma política de “saudização” do mercado de trabalho, para homens e mulheres, mas as coisas demoram o seu tempo.
E a impossibilidade de as mulheres terem carta de condução?
Posso dizer que tenho a felicidade de ter um motorista.
Na Europa, todas as mulheres podem guiar se quiserem.
Sim, já conduzi em Itália, em França, em todos os países por onde passei.
Não poder fazê-lo no seu país não a incomoda?
Não, é uma tradição e eu respeito as tradições. Há mulheres que se queixam, claro, e acho que vão ter essa possibilidade mais dia, menos dia.
Como é que as mulheres podem ter sucesso nos seus negócios e na criação das suas próprias empresas se depois estão impossibilitadas de uma coisa tão básica como guiar um carro?
Todas as mulheres têm motorista. E se não têm dinheiro para isso, são levadas pelos maridos ou pelos irmãos.
Há uma grande diferença entre as mulheres das classes baixas e as das classes baixas em relação ao papel que têm na sociedade? Ou as proibições aplicam-se a todas?
As regras aplicam-se a toda a gente. A questão é o género e não o estatuto social. Conheço muitas mulheres de zonas rurais que têm um espírito muito mais empreendedor do que aquelas que podem estar o dia todo sentadas sem fazer nada.
De vez em quando lemos na imprensa que mulheres vítimas de violação têm sido condenadas pelos tribunais sauditas por não respeitarem a segregação sexual. São consideradas adúlteras em vez de vítimas de violação [a ONG Human Rights Watch tem denunciado vários casos]. Isto é verosímil?
As notícias às vezes são distorcidas e não chegamos a saber o que aconteceu ao certo. Não sei a que casos se refere. Se calhar, algumas mulheres podem mesmo ter querido estar com esses homens, não sei. Não estou em posição de dizer se aconteceu ou não.
Como descreve a segregação sexual no seu país: é semelhante ao regime de apartheid que existiu na África do Sul?
A segregação na Arábia Saudita faz parte da interpretação estrita da lei islâmica. A Arábia Saudita segue a escola de interpretação hanbalita, a mais conservadora [das quatro escolas clássicas sunitas da lei islâmica]. Outros países, como o Koweit e ou Bahrain, têm outras interpretações. Se for a um restaurante, encontra a zona para as famílias e a zona para os homens.
Se for sozinha a esse restaurante, pode entrar?
Se quiser, posso, embora prefira não o fazer. Posso ir e sentar-me na zona das famílias, indo sozinha ou com outra mulher. Não há problema. A segregação vê-se sobretudo nos locais de trabalho. Nos bancos, por exemplo: há uns onde só trabalham homens e outros onde só trabalham mulheres.
Já disse que respeita a tradição. Mas considera-a positiva?
Por que não? Acho que sim.