domingo, 11 de março de 2012

A ficção ajuda a contar os subúrbios de Liverpool

Soljas

Graham Johnson

Ed. Guerra & Paz, 2012

O jornalismo vive de histórias e anda sempre à procura de heróis. Quando precisa de noticiar um número, um relatório ou uma realidade abstracta, vai desencantar uma pessoa que sirva para o “era uma vez” mediático. Chama-se a isto, do ponto de vista dos jornalistas, “arranjar um caso”. Quer dizer: encontrar uma pessoa que dê a cara pelo facto abstracto.
 
Quando não há casos, os jornalistas inventam-nos. Por isso é que as redes sociais na Internet andam cheias de pedidos bizarros de jornalistas. Querem pessoas pobres que tenham comprado um telemóvel na Austrália, pessoas feias que só comam hambúrgueres à sexta-feira, pessoas divorciadas que só saem de casa ao domingo. Tudo verosímil e edificante, como se quer.

O jornalista Graham Johnson poderia ter feito exactamente o mesmo. Se queria escrever um livro sobre gangues juvenis em Inglaterra, metia-se na Internet à pergunta de rapazes com menos de 15 anos que se dedicam a arruinar a vida da classe média-baixa a que pertencem. Era fácil para ele, poupava dinheiro ao patrão, fazia vender jornais e deixava os leitores, que têm o espírito crítico de uma parede, todos contentes.

Mas não. Graham Johnson, de 43 anos, jornalista de investigação do Sunday Mirror, terá acompanhado o tema durante três anos, com olhos de ver. No fim, em vez de publicar reportagens mais ou menos poéticas sobre a vida dos subúrbios britânicos, escreveu Soljas, romance saído em 2010 em Inglaterra e agora editado em Portugal.
Utilizar a ficção como substituto da realidade é muitas vezes útil, sobretudo do ponto de vista de um jornalista. Se não é possível, por contingências várias, contar tudo o que se viu, ou ver tudo o que se queria, o melhor é pegar no pouco que se tem e fazer um romance baseado em factos. Em vez de uma reportagem fraca, ganha-se um livro forte, com a ética da rua e a estética da literatura.

“Danielle: fronha enrugada, bronzeado falso, cabelo curto e louro, mamas grandes […]. Vai ser montada pela casa toda, daqui a pouco. Amanhã, os rapazes hão-de ir todos ao bar local, o Canada Dock, de telefone em punho e mandar por bluetooth o novo vídeo da Danielle. A malta vai adorar” (pag. 23). “Nogger está a pensar nos seus próprios pais, carochos de dentes podres. Monster Munch ao pequeno-almoço, para ele e para as irmãs, gelados meio descongelados para o lanche. A abanar para longe os fumos do crack enquanto vêem CBeebies [canal infantil de TV]” (pag. 112).

O ritmo da narrativa é alucinante, como se estivéssemos na cabeça perdida dos putos suburbanos. A linguagem, rente ao vivido. E a tradução, que tenta replicar a linguagem de rua, é por vezes desadequada, como quando opta por “tás a zber” em lugar de “estás a perceber”. E o mesmo se diga do próprio título, Soljas, que vai buscar o calão britânico de rua para soldiers (soldados), que é como os membros dos gangues juvenis se chamam a si mesmos.

Evidentemente, o significado da  palavra soljas não é entendível pelos portugueses (eu, pelo menos, tive de pesquisar na Internet até perceber do que se tratava).

O substrato real para esta história está nos subúrbios de Liverpool. O gangue Nogzy, liderado por Nogger e Dylan, rivaliza com o gangue Crocky (o Guardian contava em 2007 uma história real sobre os dois gangues).

São pré-adolescentes de quem os pais e a polícia têm medo. Não estudam, não trabalham, passam o dia a ver pornografia, a fumar haxixe, a traficar cocaína, a comprar armas, a assaltar casas e, se for preciso, a matar pessoas. São incapazes de perceber a diferença entre a vida e um videojogo, entre pessoas reais e reality shows de celebridades, entre namoradas e estrelas da pornografia. Não é só preocupante, é grotesco.

Parece que  em Portugal tem vindo a diminuir  o número de crimes praticados por jovens: dizia-se isso em 2008 e continua a dizer-se em 2012 (“A Procuradoria Distrital de Lisboa registou menos [663] crimes cometidos por jovens menores em 2011 relativamente ao ano anterior”, escrevia o Diário de Notícias a 26 de Fevereiro do corrente, na edição imprensa e sem reprodução online). Em Inglaterra, acontece o contrário. Os motins de Agosto passado em Londres, Liverpool e outras cidades, provam que os gangues juvenis são um problema gravíssimo. Felizmente, aos olhos do portugueses, Soljas nunca daria uma reportagem de jornal. Está bem como livro de ficção que é.

[adenda: o rapper britânico Plan B publicou em Março de 2012 um tema, "Ill Manors", sobre os motins de 2011]