segunda-feira, 21 de maio de 2012

A morte do jornalismo

Assassinaram um Jornalista
(Murder Without Borders, 2009)

Terry Gould
(tradução de Victor Antunes)

Ed. Planeta, 2012

Nas ditaduras os jornalistas incómodos são silenciados pela morte. Nas democracias formais são-no pela restrição no acesso às fontes de informação e, se isso não funciona, pelo opróbrio ou pela perseguição judicial.

A notícia recente sobre a alegada chantagem feita pelo ministro Miguel Relvas sobre a jornalista do Público Maria José Oliveira cabe na segunda categoria. E coincide, a divulgação dessa notícia, com a leitura que acabo de fazer do novo livro de Terry Gould, Assassinaram Um Jornalista, que cabe na primeira. 

Se o livro de Gould nos recorda com estrondo que os jornalistas são o alvo principal de déspotas, ditadores e corruptos, pagando com a própria vida a divulgação da verdade dos factos, o "caso Relvas" é talvez um pouco mais abjecto: os representantes do povo, livremente eleitos, têm cada vez menos pruridos em atacar a imprensa quando esta cumpre o seu único objectivo nobre: dar aos eleitores informações que lhes permitam julgar a acção dos eleitos. Dizê-lo parece um lugar-comum, mas consubstancia a noção de que as democracias europeias são cada vez mais uma formalidade.

Jornalista de investigação nascido em Nova Iorque em 1949, Gould tenta explicar "o que faz com que um jornalista pobre de uma pequena cidade se agarre a uma história mesmo depois de ser ameaçado de morte e de ter recusado avultadas quantias para a abandonar" (p. 16).

O autor começou por atentar, algures em 2000, na "praga de homicídios" de jornalistas nas Filipinas. Cinco anos mais tarde, avançou para a escrita deste livro-homenagem. Deslocou-se a vários países, falou com familiares, colegas e amigos de jornalistas vítimas de assassínio e consegue reconstruir, com recorte literário, as circunstâncias da morte deles. A saber: Guillermo Bravo Vega (Colômbia), Marlene Garcia-Esperat (Filipinas), Manik Chandra Saha, (Bangladesh), Anna Politkovskaya (Rússia), Valery Ivanov e Alexei Sidorov (Rússia) e Khalid W. Hassan (Iraque).

Concluiu-se que não são apenas os cenários de guerra a criar condições para o homicídio dos profissionais da informação. O caso de Anna Politkovskaya (1982-2006), é modelar: trabalhou sobre a guerra da Tchetchénia, mas veio a ser assassinada à porta de casa em Moscovo.

Gould nem sempre clarifica se os jornalistas que escolheu eram realmente profissionais. Teria sido fundamental dizer se exerciam a profissão a tempo inteiro, se tinham a preparação técnica e a experiência devidas para serem jornalistas e, ainda mais importante, se eram jornalistas ou activistas disfarçados de jornalistas. Esta destrinça em nada diminuiria a gravidade dos crimes contra eles cometidos, nem os efeitos que a sua morte tem sobre as liberdades de imprensa e de expressão, mas ajudaria a explicar eventuais imprudências por parte dos visados.

Gould insinua que alguns dos retratados possam ter "deliberadamente escolhido o martírio", ou seja, esticado a corda por egotismo, afã proselitista ou mecanismos psicológicos intrincados. Essas hipóteses levam-o a algumas divagações de matriz psicanalítica, feitas de maneira subtil e por isso mesmo certeiras (pp. 50 ou 190). Porém, o livro termina com uma conclusão mais abrangente: "Nenhum dos jornalistas que figura[m] neste livro mant[iveram] uma distância segura em relação aos lobos da sua aldeia [...]. Creio que a melhor maneira de compreender as suas motivações é reconhecer a extensão da corrupção e da violência nos locais onde viviam. [...] Fosse qual fosse a psicologia de cada um, entendiam agir em benefício das muitas vítimas da sua sociedade atormentada."

Uma última frase sobre a tradução: salvo a quota de responsabilidade do original, a versão portuguesa torna a narrativa por vezes sonolenta, além de apresentar pontualmente alguns problemas, como quando diz que jornal russo Novaya Gazeta é um "tablóide" (p. 200), palavra que em inglês faz sentido, por ser usada para referir um formato gráfico, mas em português é desadequada, por ser comummente um sinónimo de jornal sensacionalista, o que não é o caso.