quarta-feira, 6 de março de 2013

"O espírito da fornicação", por António Guerreiro

«Nas últimas semanas, os media europeus têm tentado escrever uma crónica da vida esotérica do Vaticano que poderia intitular-se, à maneira nietzschiana, “A resignação do Papa a partir do espírito da fornicação”. Esta crónica informa-nos muito pouco sobre a vida secreta das altas instâncias da hierarquia católica, mas diz-nos muito sobre a excitação que provoca entrar na zona mais interdita às coisas da sexualidade, usando uma pergunta característica do século XIX: “Diz-me os teus desejos e eu dir-te-ei quem és”.

Tal crónica começou com a eleição, pelas revistas mais mundanas, de um símbolo sexy: um secretário do Papa, a quem chamaram o “George Clooney do Vaticano”. E prosseguiu com a revelação de um “lobby gay” por trás da extraordinária resignação. É sabido que o pressuposto da dominação heterossexual é o de que em qualquer lugar de poder onde residam mais do que dois homossexuais, aí se instala um lobby. Mas um “lobby gay” no Vaticano não tem qualquer verosimilhança. Antes de mais porque só poderia ser assim designado um grupo de influência, uma organização que se representa como classe com interesses comuns, em torno de questões que têm que ver com a integração da sexualidade na luta política e no debate religioso; em segundo lugar, porque o próprio conceito de “gay” refere-se não apenas a uma orientação sexual mas a uma forma e a um estilo de vida que criam uma cultura, ostensivamente exibida para ser objecto de reconhecimento. Um bispo pode ser homossexual, mas o que lhe está absolutamente interdito é ser “gay”.

O mais interessante porém é o facto de uma instituição que fez da castidade uma das suas regras classificar os seus membros como heterossexuais ou homossexuais, mas não os considerando em pé de igualdade: enquanto os primeiros são-no em potência, mas — em princípio — não em acto (aceitam submeter o corpo à maceração, à mortificação; detêm o poder imenso de não-fazer), os segundos são vistos como destituídos desse poder e, se são homossexuais em potência, logo também o são em acto; os primeiros, por exigência ascética, lutam contra o espírito da fornicação; os segundos estão reféns da concupiscência da carne e do espírito. Em suma, são o que sempre foram desde o século XIX, quando eram considerados “doentes do instinto sexual”.

Ora, o que é curioso verificar é que esta visão que a Igreja tem da homossexualidade é reproduzida nos media muito modernos, muito desinibidos, que até preferem dizer “gay” a “homossexual”, mas assim que vêem alguns homossexuais juntos acham que eles não podem estar a fazer outra coisa se não a fornicar ou a reivindicar a consciência de classe.»
António Guerreiro, Ípsilon (Público), 1 de Março de 2013