sábado, 21 de dezembro de 2013

Uma visão pessoalíssima de Natália Correia


O Botequim da Liberdade
Fernando Dacosta
Casa das Letras / Leya
ISBN 978-972-46-2195-1

A narrativa que o jornalismo constrói sobre si mesmo, com reflexos nas leis e no entendimento público da profissão, é largamente ficcional. Os jornalistas não assumem que o seu trabalho é apenas uma forma de ler, descrever, pensar e recriar o mundo – tal como o cinema documental, o teatro, a fotografia ou as histórias que as avós contam. O jornalismo abjura a ficção, mesmo se faz uso dela, e jamais aceita que o discurso que produz seja outra coisa que não um reflexo directo do real.

É por isso que ainda hoje persiste o mito da objectividade jornalística – mito criado na Europa na segunda metade do século XIX para permitir que os jornais, até então de causas e partidos, pudessem chegar a mais gente e produzir maiores lucros, como afirma José Rebelo em O Discurso do Jornal (2000).

Ora, se nos ficássemos pelo autoconceito do jornalismo, dificilmente poderíamos entender O Botequim da Liberdade, de Fernando Dacosta (n. 1945), e menos ainda considerá-lo um dos melhores livros portugueses de 2013.

A obra não nos propõe um relato objectivo, como o que por norma se espera de um jornalista. É, antes, uma visão pessoalíssima de Natália Correia (1923-1993), cruzamento de jornalismo e tributo, memórias pessoais e factos históricos, interpretações e suposições. Uma resenha engajada sobre um período recente da nossa vida colectiva. O autor assume, em nota final, que se trata de uma narrativa e antes deixa dito: “Com Natália Correia nem sempre havia fronteiras entre ficção e realidade.”

O Botequim do título, bar fundado por Natália no Largo da Graça, em Lisboa, em 1971, e ainda hoje em funcionamento, depois de alguns anos de interrupção, é descrito como um espaço onde se “navegava delirantemente em demanda de continentes venturosos.” O registo lírico de Dacosta: “No cenário da política e da cultura portuguesas das últimas décadas do século XX, o bar ocupou um espaço angular. Por ele, pelas suas fabulosas madrugadas, passaram projectos exaltantes de artes, de utopias, de convívios, de generosidades, de cumplicidades; pela sua saleta de músicas e cetins, estratégias de revoluções, de governos, de diplomacias, de socialismos, foram feitas, desfeitas, sem desânimo nem culpa.”

Natália “poeta, dramaturga, romancista, ensaísta, cronista, conferencista, deputada, oradora, editora, tradutora” é interpretada como “forte e desprotegida, imponente e indefesa, egoísta e generosa, arguta e ingénua, dissimulada e frontal.” Muito para além da imagem sedutora, primeiro, e combativa, depois, que o grande público dela guardará, O Botequim da Liberdade conta uma Natália mística até à náusea. A mulher que acreditava em amores lunares com piano ao fundo era, afinal, uma maga de energia andrógina.

O tema da sexualidade, caro ao autor, percorre inúmeras páginas, enquanto a actualidade do pensamento de Natália, à luz da crise que vivemos, é exaustivamente sublinhada.

O jornalista recupera um tempo em tons impressionistas. Esteve lá e viveu. Não quis ser objectivo no relato. A objectividade, às vezes, é sinal do não-vivido. Bruno Horta

[texto publicado no Diário de Notícias - caderno QI de 21 de Dezembro de 2013, p. 13]