domingo, 31 de agosto de 2014

A transexualidade é natural?

[texto publicado no Diário de Notícias/Quociente de Inteligência de 30 de Agosto de 2014, pp. 10-12]




Saiu a primeira revista científica que aborda a transexualidade sem a considerar uma doença. Transgender Studies Quartely surge nos EUA numa altura em que o tema da identidade de género está a atingir o auge mediático e académico. Por Bruno Horta



Uma daquelas notícias que se perdem no meio do Verão – o anúncio da mudança de sexo do manequim croata Andrej Pejic, a 24 de Julho.  “Enquanto mulher transgénero, espero mostrar depois do processo de mudança que posso ser feliz e ter sucesso sem precisar de esquecer o passado", escreveu no Facebook a agora modelo feminina, que passa a chamar-se Andreja. Dias depois, no Twitter, detalhava ter feito uma cirurgia e rejeitava “ter-se tornado” uma mulher. “Sempre fui mulher, porque sempre senti que o era.”

Andreja Pejic é um dos mais poderosos ícones da indústria da moda. Rompeu para a fama na Vogue Paris de Setembro de 2010 e rapidamente passou a trabalhar para Gaultier, Galliano, Paul Smith ou Comme des Garçons, muitas vezes em desfiles e produções femininas. Em entrevista ao QI, ainda apenas Andrej, em Setembro de 2012, disse que tivera “um comportamento muito feminino” em criança, pois gostava de brincar com bonecas e de se vestir como as amigas. Sobre transexualidade, não se alongou: “As fronteiras entre o que é masculino ou feminino têm vindo a desaparecer em termos de vida social, económica e sexual.” 


Quando ela nasceu, há 22 anos – em Tuzla, na Bósnia-Herzegovina, pouco antes do início da guerra na ex-Jugoslávia, o que a obrigou a viver alguns anos num campo de refugiados na Sérvia – a transexualidade começava a ganhar foros de tema académico. Saía finalmente do restrito campo do activismo social e entrava no restrito mundo da universidade. Em 2014, quando Andreja Pejic muda de sexo e género, a transexualidade ganha uma revista científica pioneira: Transgender Studies Quartely (TSQ).


Trata-se de uma publicação em inglês, em versão electrónica e impressa, que inclui revisão por pares (peer-review, método de controlo de qualidade). Tem a chancela da Duke University Press (Carolina do Norte, EUA) e os principais editores são dois professores universitários: Susan Stryker, professora de Estudos de Género na Universidade do Arizona, e Paisley Currah, professor de Ciência Política e Estudos de Género na City University de Nova Iorque.


O primeiro número, que é duplo, saiu a 23 de Maio e tem como tema “Pós-pós-transexual: Conceitos-chave para os Estudos Transgénero no Século XXI”. A próxima edição está agendada para Outubro e será sobre “A Descolonização do Imaginário Trans”. 


Na capa do volume de estreia, uma imagem que é uma declaração de intenções: Chelsea Manning, transexual anteriormente conhecida por Bradley Manning, o militar americano que em 2009 verteu para a WikiLeaks centenas de milhares de documentos classificados sobre a guerra do Iraque e do Afeganistão e acabou condenado, em Agosto do ano passado, a 35 anos de prisão.


“Penso que o caso Manning é importantíssimo”, afirma Susan Stryker, de 53 anos, em entrevista ao QI. “É uma excelente forma de mostrar a transversalidade dos temas trans. É impossível pensar hoje a geopolítica – a vigilância exercida pelo estado, as pretensões globais dos EUA, assim como as estratégias de resistência à opressão dos governos – sem falar de Manning e da questão transgénero.”


Mais do que uma revista científica sobre transexualidade, a TSQ apresenta-se como a primeira revista científica sem uma abordagem médica à transexualidade, o que diz quase tudo sobre a ideologia que lhe subjaz. 


Absolutamente central, aqui, é o conceito de biopolítica, ou biopoder, conceito construído, tal como o conhecemos, na década de 1970 pelo filósofo francês, e homossexual, Michel Foucault (1926-1984). Explica Susan Stryker na revista: “Biopolítica descreve o cálculo de custos e benefícios através do qual as características biológicas de uma população são escrupulosamente aproveitadas para fins determinados pelo Estado ou por este autorizados.” O termo, acrescenta, refere-se à “somatização, por parte do indivíduo, das normas corpóreas e da ideologia que regula toda a população a que esse mesmo indivíduo pertence.”


Vivemos, portanto, em sociedades cujas tradições e sistemas político, social, legal, religioso e científico promovem a ideia de “inevitabilidade natural” nos corpos e comportamentos. É “normatividade de género” ou “binarismo de género”, que nega, no dizer de Susan Stryker, “o facto de a construção do corpo ser um artifício altamente contingente e reconfigurável”.


Vale a pena seguir o pensamento de Susan Stryker por mais alguns instantes: “Na abordagem biopolítica, o género não pertence, à partida, aos domínios da representação, isto é, à formação de imagens correctas ou incorrectas sobre a coincidência entre um sexo significante (macho ou fêmea) e uma categoria social significante (homem ou mulher) ou um quadro psíquico (masculino ou feminino). Na abordagem biopolítica, o género é, sim, um instrumento através do qual todos os corpos são confiscados, o que tem efeitos concretos como seja o rastreio burocrático que começa no nascimento, acaba na morte e atravessa todo o tipo de práticas de documentação exercidas ou autorizadas pelo Estado.”


Estamos no plano teórico puro – o plano dos Estudos Transgénero. A revista reivindica que as pessoas transexuais, tal como reivindicaram os homossexuais noutras épocas, não são doentes mentais (daí a rejeição da abordagem médica). São vítimas das normas sociais que vigiam, controlam e censuram todos os comportamentos não-normativos, especialmente no domínio das sexualidades.


“Pessoalmente, não considero a transexualidade uma patologia”, explica Susan Stryker ao QI. “É uma forma de se ser diferente, tal como a homossexualidade. Há quem seja e há quem não seja, é simples. Por vezes, o preconceito social ou a dificuldade que existe em lidar com a temática transgénero dentro das relações ou da família podem criar problemas de adaptação às pessoas trans. Mas ser trans não é, em si, uma doença. Há muitos casos em que os serviços de saúde intervêm sobre situações não-patológicas: a gravidez, por exemplo.”


Ao que se lê na introdução, os Estudos Transgénero, como campo interdiciplinar autónomo, têm origem em 1991 no livro Posttransexual Manifesto, da americana Sandy Stone. Aí se chamava a atenção para a necessidade de levar a transexualidade para a praça pública e quebrar o silêncio que então existia em torno do tema, utilizando-o, até, para “produzir disrupções nas sexualidades convencionais”.


Passados 23 anos, os Estudos Transgénero são uma área do conhecimento ainda a dar os primeiros passos. Convidada a escrever um dos artigos da TSQ, a referida Sandy Stone, professora emérita da Universidade do Texas, deixa o resumo: “É bom lembrar que ninguém que se dedique aos Estudos Transgénero tem formação em Estudos Transgénero. Estamos tão perto da origem quanto isto.”


A mesma especialista entende ser esta a quarta fase da evolução da disciplina: “Não está ainda formada nem tem os objectivos todos traçados, mas está no seu auge.” As outras três fases terão sido, por ordem cronológica, a do despertar individual para a temática, a da aproximação entre iguais e, ainda, a do início de um movimento social transgénero baseado em encontros, conferências e publicações amadoras.


Susan Stryker acentua que os Estudos Transgénero são um campo em “rápida consolidação”. Ao QI, aponta os EUA, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia como faróis nesta área, logo seguidos pela Escandinávia e países do subcontinente indiano e do Sudeste Asiático. Questionada sobre quantos investigadores se dedicam ao assunto, em que universidades e em que termos, a professora informa que a investigação provém dos grandes departamentos das universidades americanas, enquanto muitas faculdades de ciências humanas de vertente liberal têm cursos de Estudos Trans, mas apenas ao nível do bacharelato. “Ainda assim, persiste uma certa resistência da academia feminista em relação aos Estudos Trans”, sublinha.


Para Susan Stryker, “há uma curiosa relação entre a língua e os países em que os Estudos Trans se estabelecem primeiro.” “Conceptualmente, a disciplina baseia-se na distinção entre sexo e género, que facilmente se faz na língua inglesa mas é difícil de fazer noutros idiomas, incluindo os de origem latina.”


Em rigor, a língua portuguesa opera bem a diferença entre sexo e género, mesmo se na linguagem comum os termos se equivalem. “Sexo” descreve características biológicas, ou seja, os caracteres sexuais primários e secundários: masculino/macho e feminino/fêmea. “Género” descreve a construção social e cultural feita em torno do sexo: mulher/senhora homem/senhor. Quem nasce pertencendo ao sexo masculino, por exemplo, deve comportar-se de acordo com o que a sociedade espera de um homem: as bonecas são para as meninas, os rapazes não vestem saias, os homens sentem-se atraídos por mulheres, os homens são menos emocionais que as mulheres, etc.


Questionar isto representa um corte epistemológico com a “natureza”, porque na natureza nada é natural, tudo é convenção – eis o que vêm dizer os Estudos Transgénero, como já o tinham dito os Estudos Queer nos anos 1980. “O biologismo é a crença segundo a qual factores biológicos são determinantes na essência e para a essência dos fenómenos humanos, incluindo categoriais de identidade como raça e etnia, estatuto socio-económico, género e sexo”, escreve Sari M. van Anders, professora de psicologia e Estudos Feministas na Universidade do Michigan. Os Estudos Trans negam o “biologismo”. “Desde pelo menos o século XIX, a instituição médica, científica e legal, na Europa e na América do Norte, tem interpretado os indivíduos que manifestam comportamentos transgénero, ou têm características análogas, como seres cujos corpos devem sujeitar-se a toda a sorte de intervenções, com ou sem anuência”, lê-se na introdução da revista. “Os Estudos Transgénero, pelo contrário, derivam da contestação ao conhecimento normativo, surgida ao longo do século XX a partir da Teoria Crítica [Escola de Frankfurt] e das epistemologias pós-estruturalista e pós-modernista.”


Como o próprio título indica, a TSQ compromete-se a publicar quatro números por ano, o que significa que a edição de Outubro será igualmente dupla. A Duke University Press financia o projecto durante cinco anos com 100 mil dólares (cerca de 75 mil euros) e os editores ficaram responsáveis por angariar outro tanto. Nas contas de Susan Stryker, isto equivale a escassos 15 mil euros por ano. Por alguma razão que aquela responsável prefere não explicar, cinco fundações americanas que costumam doar fundos para causas trans não quiseram financiar o projecto, pelo que os editores optaram, no que aos seus 75 mil euros diz respeito, por criar campanhas de angariação de fundos através da internet (crowdfunding).


O volume inaugural apresenta 86 artigos que correspondem a entradas de enciclopédia e não propriamente a ensaios académicos. Esses surgirão nos números seguintes. Note-se que o nome Andrej Pejic não aparece uma única vez nas 302 páginas da revista, talvez por a figura andrógina que ele assumia antes da mudança de sexo não ter peso suficiente no discurso político trans. Várias figuras públicas transgénero são enunciadas nos artigos da revista. Uma delas é Buck Angel, conhecido actor pornográfico americano cujo trabalho pôde ser visto pelos lisboetas em 2008 quando a curta-metragem Schwarzwald: The Movie You Can Dance To, de Richard Kimmel, foi exibido no festival de cinema Queer Lisboa. Buck Angel mudou de género sem se sujeitar à mudança de sexo. “Não preciso de ter um pénis para ser um homem” é a declaração de guerrilha que costuma fazer.


É desigual a abordagem dos textos, uns imparciais e de síntese, outros assumidamente interventivos e focados em cisões do movimento social trans. A questão da linguagem e da ideologia das palavras atravessa-os quase todos. Os Estudos Trans reclamam o seu espaço e a batalha faz-se ao nível dos conceitos. 


Que é a transexualidade? Qual o alcance do conceito transgénero? O travestismo é uma forma de “transgenerismo” (palavra não dicionarizada)? Que lugar têm na discussão as pessoas intersexuais (hermafroditas)? Para que servem os Estudos Trans na luta pela “despsiquiatrização” da transexualidade? À luz desta disciplina, como entender a androginia noutras culturas?


Comecemos pela entrada “LGBT”, assinada por Zein Murib, aluno de doutoramento em Ciência Política na Universidade do Minnesota. “O uso ubíquo da sigla LGBT no discurso social, académico e político norte-americano sugere que as categoriais lésbica, gay, bissexual e transgénero se equivalem e são idênticas na sua experiência de vida, pelo que podem ser todas remetidas para essa mesma categoria”, enuncia. Ora, as recentes mudanças na percepção pública Ocidental da homossexualidade teriam criado, segundo Zein Murib, um conjunto de privilegiados dentro das minorias sexuais. Seriam os assimilados: gays e lésbicas que querem viver de acordo com as regras que muitos heterossexuais projectam (monogamia, casamento, filhos). Esses assimilados rejeitariam qualquer expressão não-normativa da sexualidade como a que transexuais e travestis incorporam.


O ponto de vista coincide, em parte, com divergências havidas no interior do movimento LGBT português por volta de 2009-2010, quando o tema do casamento entre pessoas do mesmo sexo estava na ordem do dia. Activistas mais chegados à esquerda criticaram sectores LGBT centristas por estes, alegadamente, pretenderem extinguir a exuberância dos travestis na Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa (manifestação pública que decorre em fins de Junho).


Na entrada “Cisgenderism”, os psicólogos Erica Lennon e Brian J. Mistler, notam que o termo cisgénero (“dentro do género”, ou seja, as pessoas não-transexuais) pode ser aplicado a quem “nega, denigre ou medicaliza as identidades de género que não correspondem ao sexo atribuído à nascença”. O “cisgenderismo”, dizem, é uma “ideologia que protege e prolonga a crença de que as identidades cisgénero devem ser mais valorizadas do que as identidades transgénero, o que cria um sistema de poder e privilégio.” Logo, os indivíduos que não se conformem às normas da maioria passam a ser vistos como “desviantes e imorais”.


Especialmente revelador é o texto “Islam and Islamophobia”, demonstrativo de que o universo trans pode criar pontes para temáticas diversas. Rüstem Ertüg Altinay, aluno de doutoramento na Universidade de Nova Iorque, afirma ser distorcida a ideia de que os países islâmicos perseguem os homossexuais masculinos, obrigando-os a mudar de sexo. Uma ideia alimentada pelas práticas no Irão dos ayatollahs, como mostra o documentário Be Like Others, de Tanaz Eshaghian, exibido no festival DocLisboa 2008. 


“O discurso nacionalista que retrata o Islão e as sociedades islâmicas como puramente transfóbicas, homofóbicas, ignorantes e retrógradas serve o mito da excepcionalidade ocidental e legitima formas de violência e opressão” sobre o Médio Oriente, escreve Rüstem Ertüg Altinay. Conclui: “A bioética islâmica dá às pessoas uma autonomia limitada sobre os seus corpos, pois considera que lhes foram atribuídos por Alá como prova de confiança. Dentro deste modelo, as operações de mudança de sexo são proibidas por constituírem lesões auto-infligidas. Os maiores opositores destas operações são os juristas sunitas [a maior ramo do Islão], para os quais se trata de repudiar a vontade de Alá. Os apoiantes das operações de mudança de sexo, imãs shiitas e uma minoria de juristas sunitas, sublinham o princípio islâmico de que a necessidade deve sobrepor-se às proibições.”


Na linha deste artigo, Susan Stryker reconhece logo nas primeiras páginas a insuficiente visão euro-americana da revista. Espalhados pelo mundo, sempre houve grupos que cultivam aquilo a que o Ocidente agora chama “transgenerismo”: eunucos ou hijras na Índia, baklâs nas Filipinas, mahus no Havai ou berdaches entre os ameríndios.


“Uma vez que o conceito transgénero pode incluir, em última instância, todas as variantes de uma norma nem sempre estabelecida, arrisca-se a ser mais um programa de colonização”, concede Susan Stryker. Os Estudos Trans estariam, pois, a “tentar entender a diversidade humana a partir de um quadro mental de matriz eurocêntrica”, quando, na verdade, outras culturas incorporam e interpretam com outras ferramentas as suas próprias manifestações de metamorfose de sexo e género sem as nomearem como transgénero.


No artigo “Transgender”, de Cristan Williams, directora da Transgender Foundation of America, ficamos a saber que aquela palavra, como termo-chapéu para “um conjunto de identidades de género não-normativas”, ganhou popularidade no inglês americano em inícios da década de 1990 (a autora rejeita a ideia corrente de ter sido o travesti americano Virginia Prince a cunhar a palavra em 1969). Já em meados de 80, diz, “transgénero” designava genericamente transexuais, travestis, intersexuais (hermafroditas) e outras identidades não-cisgénero.


Mas voltemos à questão da doença, fundamental no discurso trans. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a transexualidade é uma “perturbação mental”. Assim aparece descrita no documento de referência Classificação Internacional das Doenças (ICD, na sigla inglesa), décima versão, de 2010. Note-se, a propósito, que até 1990 também a homossexualidade foi uma doença mental no entender da OMS, ainda que tivesse desaparecido em 1973 do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.


Este mesmo manual, cuja quinta edição saiu no ano passado, fez substituir a anterior noção de “perturbação da identidade de género” por “disforia de género”. À luz da psiquiatria, uma pessoa pode ser diagnosticada com “disforia [mal-estar] de género” se manifestar uma “diferença assinalável entre o género que expressa ou sente e o género que outros lhe atribuiriam, o que deve durar pelo menos seis meses.”


Tais visões psiquiatrizantes têm sido contestadas pelo activismo trans – veja-se a campanha internacional Stop Trans Pathologization 2012. E por instituições como o Parlamento Europeu – que em 2011 aprovou uma resolução que pedia à OMS a retirada da transexualidade do ICD (cuja 11ª versão estava prevista para 2015 e foi adiada para 2017).


No artigo “Human Rigths”, lê-se que a identidade de género (por oposição à orientação sexual, ou seja, homo ou bissexualidade) só no século XXI conseguiu reconhecimento como direito fundamental. Escreve Carsten Balzer, da organização não-governamental Transgender Europe, que a mudança de paradigma teve o momento alto com a aprovação dos Princípios de Yogyakarta, em 2006. O documento, reconhecido pela Organização das Nações Unidas e pelo Conselho da Europa, entre outros, fala especificamente das minoriais sexuais e diz que, “não obstante quaisquer classificações contrárias, a orientação sexual e a identidade de género não são, em si mesmas, problemas de saúde, pelo que não se podem sujeitar a tratamento, cura ou repressão.”


Os defensores da transexualidade como identidade não-patológica entendem que a violência simbólica e a discriminação de que são alvo as pessoas transexuais – por vezes vítimas de agressão e homicídio, como aconteceu em Portugal a Gisberta Salce Júnior, em 2006 – se devem em grande medida às classificações médicas.
 

Na entrada “Depathologization”, assinada pela socióloga espanhola Amets Suess, entre outros autores, destaca-se a mudança de paradigma que o discurso da “despatologização” propõe: “Deixar-se-ia de conceber a transição de género como um distúrbio mental, reconhecendo-a, sim, como um direito fundamental e uma forma de expressão da diversidade humana.” Dentro desta perspectiva, “o conflito não está na própria pessoa trans, mas numa sociedade transfóbica, caracterizada pelo binarismo de género.”


Em 2004, a Constituição portuguesa passa a incluir no artigo 13º a “orientação sexual” (homo ou bissexual) como característica em função da qual nenhum cidadão pode ser prejudicado ou beneficiado. A categoria “identidade de género” ficou de fora, o que gerou conflitos no movimento LGBT, no qual a realidade trans sempre foi marginal.


Em 2011, o Código do Registo Civil é alterado para permitir a “mudança de sexo no registo civil e correspondente alteração de nome próprio”, desde que haja um dignóstico de perturbação da identidade de género (agora entendida como “disforia de género”). Chamada Lei da Identidade de Género, teve como principais autores os então deputados Miguel Vale de Almeida (independente eleito pelo Partido Socialista) e José Soeiro (Bloco de Esquerda), que se inspiraram directamente num diploma semelhante que vigorava em Espanha desde 2007. Os transexuais portugueses passaram a poder mudar de sexo e nome sem se sujeitarem a cirurgias genitais e ao consequente procedimento judicial para efeitos de registo civil.


Em Novembro último, a Alemanha passou a permitir que os bebés intersexuais (hermafroditas) sejam registados como pertencendo a um sexo “indefinido”, o que é visto como uma forma de respeitar a integridade das cerca de 150 pessoas hermafroditas que todos os anos nascem naquele país. 


São exemplos da recente adaptação legal à realidade transgénero. Em termos mediáticos, há cada vez maior visibilidade. Disso são exemplo a série americana Orange is the New Black, que tem como uma das protagonistas a actriz transexual Laverne Cox, ou o filme O Clube de Dallas (2013), de Jean-Marc Vallée, em que o actor Jared Leto deu corpo a uma mulher transexual, o que lhe valeu um Óscar para Melhor Actor Secundário e um Globo de Ouro na mesma categoria. O mesmo se diga da emergência de manequins transexuais no Brasil, como a já famosa Lea T e a recém-chegada Carol Marra, ou ainda, entre nós, da participação do transexual mulher-para-homem Lourenço Ódin Cunha no reality show da TVI Casa dos Segredos 4, no ano passado.


Será que a temática trans inicia agora um percurso idêntico ao já feito pelos homossexuais, a caminho de uma visibilidade que se torne normalizante? “Estamos a abrir a porta”, responde Susan Stryker ao QI. “Há hoje mais oportunidades para algumas pessoas transgénero chegarem ao espaço público: as que consigam incorporar normas e ideais dominantes, como ser branco e monogâmico, ter um corpo elegante e aparentar normalidade social. Outras pessoas continuarão a ser marginalizadas. Penso que antigamente quem quer que fosse trans estava sujeito a opressão. Agora, a comunidade começa a polarizar-se em dois grupos: os mais fracos e os menos fracos de entre os trans.”