[texto publicado no Diário de Notícias/Quociente de Inteligência de 30 de Agosto de 2014, pp. 10-12]
Saiu a
primeira revista científica que aborda a transexualidade sem a considerar uma
doença. Transgender Studies Quartely surge nos EUA numa altura em que o tema da
identidade de género está a atingir o auge mediático e académico. Por Bruno Horta
Uma daquelas
notícias que se perdem no meio do Verão – o anúncio da mudança de sexo do
manequim croata Andrej Pejic, a 24 de Julho. “Enquanto mulher
transgénero, espero mostrar depois do processo de mudança que posso ser feliz e
ter sucesso sem precisar de esquecer o passado", escreveu no Facebook a
agora modelo feminina, que passa a chamar-se Andreja. Dias depois, no Twitter,
detalhava ter feito uma cirurgia e rejeitava “ter-se tornado” uma mulher.
“Sempre fui mulher, porque sempre senti que o era.”
Andreja
Pejic é um dos mais poderosos ícones da indústria da moda. Rompeu para a fama na
Vogue Paris de Setembro de 2010 e rapidamente passou a trabalhar para Gaultier,
Galliano, Paul Smith ou Comme des Garçons, muitas vezes em desfiles e produções
femininas. Em entrevista ao QI, ainda apenas Andrej, em Setembro de 2012, disse
que tivera “um comportamento muito feminino” em criança, pois gostava de
brincar com bonecas e de se vestir como as amigas. Sobre transexualidade, não
se alongou: “As fronteiras entre o que é masculino ou feminino têm vindo a
desaparecer em termos de vida social, económica e sexual.”
Quando ela
nasceu, há 22 anos – em Tuzla, na Bósnia-Herzegovina, pouco antes do início da
guerra na ex-Jugoslávia, o que a obrigou a viver alguns anos num campo de
refugiados na Sérvia – a transexualidade começava a ganhar foros de tema
académico. Saía finalmente do restrito campo do activismo social e entrava no
restrito mundo da universidade. Em 2014, quando Andreja Pejic muda de sexo e
género, a transexualidade ganha uma revista científica pioneira: Transgender
Studies Quartely (TSQ).
Trata-se de
uma publicação em inglês, em versão electrónica e impressa, que inclui revisão
por pares (peer-review, método de controlo de qualidade). Tem a chancela da
Duke University Press (Carolina do Norte, EUA) e os principais editores são dois
professores universitários: Susan Stryker, professora de Estudos de Género na
Universidade do Arizona, e Paisley Currah, professor de Ciência Política e
Estudos de Género na City University de Nova Iorque.
O primeiro
número, que é duplo, saiu a 23 de Maio e tem como tema “Pós-pós-transexual:
Conceitos-chave para os Estudos Transgénero no Século XXI”. A próxima edição
está agendada para Outubro e será sobre “A Descolonização do Imaginário Trans”.
Na capa do
volume de estreia, uma imagem que é uma declaração de intenções: Chelsea
Manning, transexual anteriormente conhecida por Bradley Manning, o militar
americano que em 2009 verteu para a WikiLeaks centenas de milhares de
documentos classificados sobre a guerra do Iraque e do Afeganistão e acabou
condenado, em Agosto do ano passado, a 35 anos de prisão.
“Penso que o
caso Manning é importantíssimo”, afirma Susan Stryker, de 53 anos, em
entrevista ao QI. “É uma excelente forma de mostrar a transversalidade dos
temas trans. É impossível pensar hoje a geopolítica – a vigilância exercida
pelo estado, as pretensões globais dos EUA, assim como as estratégias de
resistência à opressão dos governos – sem falar de Manning e da questão
transgénero.”
Mais do que
uma revista científica sobre transexualidade, a TSQ apresenta-se como a primeira
revista científica sem uma abordagem médica à transexualidade, o que diz quase
tudo sobre a ideologia que lhe subjaz.
Absolutamente
central, aqui, é o conceito de biopolítica, ou biopoder, conceito construído,
tal como o conhecemos, na década de 1970 pelo filósofo francês, e homossexual,
Michel Foucault (1926-1984). Explica Susan Stryker na revista: “Biopolítica
descreve o cálculo de custos e benefícios através do qual as características
biológicas de uma população são escrupulosamente aproveitadas para fins
determinados pelo Estado ou por este autorizados.” O termo, acrescenta,
refere-se à “somatização, por parte do indivíduo, das normas corpóreas e da
ideologia que regula toda a população a que esse mesmo indivíduo pertence.”
Vivemos,
portanto, em sociedades cujas tradições e sistemas político, social, legal,
religioso e científico promovem a ideia de “inevitabilidade natural” nos corpos
e comportamentos. É “normatividade de género” ou “binarismo de género”, que
nega, no dizer de Susan Stryker, “o facto de a construção do corpo ser um
artifício altamente contingente e reconfigurável”.
Vale a pena
seguir o pensamento de Susan Stryker por mais alguns instantes: “Na abordagem
biopolítica, o género não pertence, à partida, aos domínios da representação,
isto é, à formação de imagens correctas ou incorrectas sobre a coincidência
entre um sexo significante (macho ou fêmea) e uma categoria social significante
(homem ou mulher) ou um quadro psíquico (masculino ou feminino). Na abordagem
biopolítica, o género é, sim, um instrumento através do qual todos os corpos
são confiscados, o que tem efeitos concretos como seja o rastreio burocrático
que começa no nascimento, acaba na morte e atravessa todo o tipo de práticas de
documentação exercidas ou autorizadas pelo Estado.”
Estamos no
plano teórico puro – o plano dos Estudos Transgénero. A revista reivindica que
as pessoas transexuais, tal como reivindicaram os homossexuais noutras épocas,
não são doentes mentais (daí a rejeição da abordagem médica). São vítimas das
normas sociais que vigiam, controlam e censuram todos os comportamentos
não-normativos, especialmente no domínio das sexualidades.
“Pessoalmente,
não considero a transexualidade uma patologia”, explica Susan Stryker ao QI. “É
uma forma de se ser diferente, tal como a homossexualidade. Há quem seja e há
quem não seja, é simples. Por vezes, o preconceito social ou a dificuldade que
existe em lidar com a temática transgénero dentro das relações ou da família
podem criar problemas de adaptação às pessoas trans. Mas ser trans não é, em
si, uma doença. Há muitos casos em que os serviços de saúde intervêm sobre
situações não-patológicas: a gravidez, por exemplo.”
Ao que se lê
na introdução, os Estudos Transgénero, como campo interdiciplinar autónomo, têm
origem em 1991 no livro Posttransexual Manifesto, da americana Sandy Stone. Aí se
chamava a atenção para a necessidade de levar a transexualidade para a praça
pública e quebrar o silêncio que então existia em torno do tema, utilizando-o,
até, para “produzir disrupções nas sexualidades convencionais”.
Passados 23
anos, os Estudos Transgénero são uma área do conhecimento ainda a dar os
primeiros passos. Convidada a escrever um dos artigos da TSQ, a referida Sandy
Stone, professora emérita da Universidade do Texas, deixa o resumo: “É bom
lembrar que ninguém que se dedique aos Estudos Transgénero tem formação em
Estudos Transgénero. Estamos tão perto da origem quanto isto.”
A mesma especialista
entende ser esta a quarta fase da evolução da disciplina: “Não está ainda
formada nem tem os objectivos todos traçados, mas está no seu auge.” As outras
três fases terão sido, por ordem cronológica, a do despertar individual para a
temática, a da aproximação entre iguais e, ainda, a do início de um movimento
social transgénero baseado em encontros, conferências e publicações amadoras.
Susan
Stryker acentua que os Estudos Transgénero são um campo em “rápida
consolidação”. Ao QI, aponta os EUA, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia
como faróis nesta área, logo seguidos pela Escandinávia e países do subcontinente
indiano e do Sudeste Asiático. Questionada sobre quantos investigadores se
dedicam ao assunto, em que universidades e em que termos, a professora informa
que a investigação provém dos grandes departamentos das universidades
americanas, enquanto muitas faculdades de ciências humanas de vertente liberal
têm cursos de Estudos Trans, mas apenas ao nível do bacharelato. “Ainda assim,
persiste uma certa resistência da academia feminista em relação aos Estudos
Trans”, sublinha.
Para Susan
Stryker, “há uma curiosa relação entre a língua e os países em que os Estudos
Trans se estabelecem primeiro.” “Conceptualmente, a disciplina baseia-se na
distinção entre sexo e género, que facilmente se faz na língua inglesa mas é
difícil de fazer noutros idiomas, incluindo os de origem latina.”
Em rigor, a
língua portuguesa opera bem a diferença entre sexo e género, mesmo se na
linguagem comum os termos se equivalem. “Sexo” descreve características
biológicas, ou seja, os caracteres sexuais primários e secundários:
masculino/macho e feminino/fêmea. “Género” descreve a construção social e
cultural feita em torno do sexo: mulher/senhora homem/senhor. Quem nasce
pertencendo ao sexo masculino, por exemplo, deve comportar-se de acordo com o
que a sociedade espera de um homem: as bonecas são para as meninas, os rapazes
não vestem saias, os homens sentem-se atraídos por mulheres, os homens são
menos emocionais que as mulheres, etc.
Questionar
isto representa um corte epistemológico com a “natureza”, porque na natureza
nada é natural, tudo é convenção – eis o que vêm dizer os Estudos Transgénero,
como já o tinham dito os Estudos Queer nos anos 1980. “O biologismo é a crença
segundo a qual factores biológicos são determinantes na essência e para a
essência dos fenómenos humanos, incluindo categoriais de identidade como raça e
etnia, estatuto socio-económico, género e sexo”, escreve Sari M. van Anders,
professora de psicologia e Estudos Feministas na Universidade do Michigan. Os
Estudos Trans negam o “biologismo”. “Desde pelo menos o século XIX, a
instituição médica, científica e legal, na Europa e na América do Norte, tem
interpretado os indivíduos que manifestam comportamentos transgénero, ou têm
características análogas, como seres cujos corpos devem sujeitar-se a toda a
sorte de intervenções, com ou sem anuência”, lê-se na introdução da revista.
“Os Estudos Transgénero, pelo contrário, derivam da contestação ao conhecimento
normativo, surgida ao longo do século XX a partir da Teoria Crítica [Escola de
Frankfurt] e das epistemologias pós-estruturalista e pós-modernista.”
Como o próprio
título indica, a TSQ compromete-se a publicar quatro números por ano, o que significa
que a edição de Outubro será igualmente dupla. A Duke University Press financia
o projecto durante cinco anos com 100 mil dólares (cerca de 75 mil euros) e os
editores ficaram responsáveis por angariar outro tanto. Nas contas de Susan
Stryker, isto equivale a escassos 15 mil euros por ano. Por alguma razão que
aquela responsável prefere não explicar, cinco fundações americanas que
costumam doar fundos para causas trans não quiseram financiar o projecto, pelo
que os editores optaram, no que aos seus 75 mil euros diz respeito, por criar
campanhas de angariação de fundos através da internet (crowdfunding).
O volume
inaugural apresenta 86 artigos que correspondem a entradas de enciclopédia e
não propriamente a ensaios académicos. Esses surgirão nos números seguintes.
Note-se que o nome Andrej Pejic não aparece uma única vez nas 302 páginas da
revista, talvez por a figura andrógina que ele assumia antes da mudança de sexo
não ter peso suficiente no discurso político trans. Várias figuras públicas
transgénero são enunciadas nos artigos da revista. Uma delas é Buck Angel, conhecido
actor pornográfico americano cujo trabalho pôde ser visto pelos lisboetas em
2008 quando a curta-metragem Schwarzwald: The Movie You Can Dance To, de
Richard Kimmel, foi exibido no festival de cinema Queer Lisboa. Buck Angel
mudou de género sem se sujeitar à mudança de sexo. “Não preciso de ter um pénis
para ser um homem” é a declaração de guerrilha que costuma fazer.
É desigual a
abordagem dos textos, uns imparciais e de síntese, outros assumidamente
interventivos e focados em cisões do movimento social trans. A questão da
linguagem e da ideologia das palavras atravessa-os quase todos. Os Estudos
Trans reclamam o seu espaço e a batalha faz-se ao nível dos conceitos.
Que é a
transexualidade? Qual o alcance do conceito transgénero? O travestismo é uma
forma de “transgenerismo” (palavra não dicionarizada)? Que lugar têm na
discussão as pessoas intersexuais (hermafroditas)? Para que servem os Estudos
Trans na luta pela “despsiquiatrização” da transexualidade? À luz desta
disciplina, como entender a androginia noutras culturas?
Comecemos
pela entrada “LGBT”, assinada por Zein Murib, aluno de doutoramento em Ciência
Política na Universidade do Minnesota. “O uso ubíquo da sigla LGBT no discurso
social, académico e político norte-americano sugere que as categoriais lésbica,
gay, bissexual e transgénero se equivalem e são idênticas na sua experiência de
vida, pelo que podem ser todas remetidas para essa mesma categoria”, enuncia.
Ora, as recentes mudanças na percepção pública Ocidental da homossexualidade
teriam criado, segundo Zein Murib, um conjunto de privilegiados dentro das
minorias sexuais. Seriam os assimilados: gays e lésbicas que querem viver de
acordo com as regras que muitos heterossexuais projectam (monogamia, casamento,
filhos). Esses assimilados rejeitariam qualquer expressão não-normativa da
sexualidade como a que transexuais e travestis incorporam.
O ponto de
vista coincide, em parte, com divergências havidas no interior do movimento
LGBT português por volta de 2009-2010, quando o tema do casamento entre pessoas
do mesmo sexo estava na ordem do dia. Activistas mais chegados à esquerda
criticaram sectores LGBT centristas por estes, alegadamente, pretenderem
extinguir a exuberância dos travestis na Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa
(manifestação pública que decorre em fins de Junho).
Na entrada
“Cisgenderism”, os psicólogos Erica Lennon e Brian J. Mistler, notam que o
termo cisgénero (“dentro do género”, ou seja, as pessoas não-transexuais) pode ser
aplicado a quem “nega, denigre ou medicaliza as identidades de género que não correspondem
ao sexo atribuído à nascença”. O “cisgenderismo”, dizem, é uma “ideologia que protege
e prolonga a crença de que as identidades cisgénero devem ser mais valorizadas
do que as identidades transgénero, o que cria um sistema de poder e privilégio.”
Logo, os indivíduos que não se conformem às normas da maioria passam a ser
vistos como “desviantes e imorais”.
Especialmente
revelador é o texto “Islam and Islamophobia”, demonstrativo de que o universo
trans pode criar pontes para temáticas diversas. Rüstem Ertüg Altinay, aluno de
doutoramento na Universidade de Nova Iorque, afirma ser distorcida a ideia de
que os países islâmicos perseguem os homossexuais masculinos, obrigando-os a
mudar de sexo. Uma ideia alimentada pelas práticas no Irão dos ayatollahs, como
mostra o documentário Be Like Others, de Tanaz Eshaghian, exibido no festival
DocLisboa 2008.
“O discurso
nacionalista que retrata o Islão e as sociedades islâmicas como puramente
transfóbicas, homofóbicas, ignorantes e retrógradas serve o mito da excepcionalidade
ocidental e legitima formas de violência e opressão” sobre o Médio Oriente, escreve
Rüstem Ertüg Altinay. Conclui: “A bioética islâmica dá às pessoas uma autonomia
limitada sobre os seus corpos, pois considera que lhes foram atribuídos por Alá
como prova de confiança. Dentro deste modelo, as operações de mudança de sexo
são proibidas por constituírem lesões auto-infligidas. Os maiores opositores
destas operações são os juristas sunitas [a maior ramo do Islão], para os quais
se trata de repudiar a vontade de Alá. Os apoiantes das operações de mudança de
sexo, imãs shiitas e uma minoria de juristas sunitas, sublinham o princípio
islâmico de que a necessidade deve sobrepor-se às proibições.”
Na linha
deste artigo, Susan Stryker reconhece logo nas primeiras páginas a insuficiente
visão euro-americana da revista. Espalhados pelo mundo, sempre houve grupos que
cultivam aquilo a que o Ocidente agora chama “transgenerismo”: eunucos ou
hijras na Índia, baklâs nas Filipinas, mahus no Havai ou berdaches entre os
ameríndios.
“Uma vez que
o conceito transgénero pode incluir, em última instância, todas as variantes de
uma norma nem sempre estabelecida, arrisca-se a ser mais um programa de
colonização”, concede Susan Stryker. Os Estudos Trans estariam, pois, a “tentar
entender a diversidade humana a partir de um quadro mental de matriz
eurocêntrica”, quando, na verdade, outras culturas incorporam e interpretam com
outras ferramentas as suas próprias manifestações de metamorfose de sexo e
género sem as nomearem como transgénero.
No artigo
“Transgender”, de Cristan Williams, directora da Transgender Foundation of
America, ficamos a saber que aquela palavra, como termo-chapéu para “um conjunto
de identidades de género não-normativas”, ganhou popularidade no inglês
americano em inícios da década de 1990 (a autora rejeita a ideia corrente de
ter sido o travesti americano Virginia Prince a cunhar a palavra em 1969). Já
em meados de 80, diz, “transgénero” designava genericamente transexuais,
travestis, intersexuais (hermafroditas) e outras identidades não-cisgénero.
Mas
voltemos à questão da doença, fundamental no discurso trans. Para a Organização
Mundial de Saúde (OMS), a transexualidade é uma “perturbação mental”. Assim
aparece descrita no documento de referência Classificação Internacional das
Doenças (ICD, na sigla inglesa), décima versão, de 2010. Note-se, a propósito,
que até 1990 também a homossexualidade foi uma doença mental no entender da OMS,
ainda que tivesse desaparecido em 1973 do Manual de Diagnóstico e Estatística
das Perturbações Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.
Este
mesmo manual, cuja quinta edição saiu no ano passado, fez substituir a anterior
noção de “perturbação da identidade de género” por “disforia de género”. À luz
da psiquiatria, uma pessoa pode ser diagnosticada com “disforia [mal-estar] de
género” se manifestar uma “diferença assinalável entre o género que expressa ou
sente e o género que outros lhe atribuiriam, o que deve durar pelo menos seis
meses.”
Tais
visões psiquiatrizantes têm sido contestadas pelo activismo trans – veja-se a
campanha internacional Stop Trans Pathologization 2012. E por instituições como
o Parlamento Europeu – que em 2011 aprovou uma resolução que pedia à OMS a
retirada da transexualidade do ICD (cuja 11ª versão estava prevista para 2015 e
foi adiada para 2017).
No
artigo “Human Rigths”, lê-se que a identidade de género (por oposição à
orientação sexual, ou seja, homo ou bissexualidade) só no século XXI conseguiu
reconhecimento como direito fundamental. Escreve Carsten Balzer, da organização
não-governamental Transgender Europe, que a mudança de paradigma teve o momento
alto com a aprovação dos Princípios de Yogyakarta, em 2006. O documento,
reconhecido pela Organização das Nações Unidas e pelo Conselho da Europa, entre
outros, fala especificamente das minoriais sexuais e diz que, “não obstante
quaisquer classificações contrárias, a orientação sexual e a identidade de
género não são, em si mesmas, problemas de saúde, pelo que não se podem
sujeitar a tratamento, cura ou repressão.”
Os
defensores da transexualidade como identidade não-patológica entendem que a
violência simbólica e a discriminação de que são alvo as pessoas transexuais –
por vezes vítimas de agressão e homicídio, como aconteceu em Portugal a Gisberta
Salce Júnior, em 2006 – se devem em grande medida às classificações médicas.
Na
entrada “Depathologization”, assinada pela socióloga espanhola Amets Suess,
entre outros autores, destaca-se a mudança de paradigma que o discurso da
“despatologização” propõe: “Deixar-se-ia de conceber a transição de género como
um distúrbio mental, reconhecendo-a, sim, como um direito fundamental e uma
forma de expressão da diversidade humana.” Dentro desta perspectiva, “o
conflito não está na própria pessoa trans, mas numa sociedade transfóbica,
caracterizada pelo binarismo de género.”
Em
2004, a Constituição portuguesa passa a incluir no artigo 13º a “orientação
sexual” (homo ou bissexual) como característica em função da qual nenhum
cidadão pode ser prejudicado ou beneficiado. A categoria “identidade de género”
ficou de fora, o que gerou conflitos no movimento LGBT, no qual a realidade
trans sempre foi marginal.
Em
2011, o Código do Registo Civil é alterado para permitir a “mudança de sexo no
registo civil e correspondente alteração de nome próprio”, desde que haja um
dignóstico de perturbação da identidade de género (agora entendida como
“disforia de género”). Chamada Lei da Identidade de Género, teve como
principais autores os então deputados Miguel Vale de Almeida (independente
eleito pelo Partido Socialista) e José Soeiro (Bloco de Esquerda), que se
inspiraram directamente num diploma semelhante que vigorava em Espanha desde
2007. Os transexuais portugueses passaram a poder mudar de sexo e nome sem se
sujeitarem a cirurgias genitais e ao consequente procedimento judicial para
efeitos de registo civil.
Em
Novembro último, a Alemanha passou a permitir que os bebés intersexuais
(hermafroditas) sejam registados como pertencendo a um sexo “indefinido”, o que
é visto como uma forma de respeitar a integridade das cerca de 150 pessoas
hermafroditas que todos os anos nascem naquele país.
São
exemplos da recente adaptação legal à realidade transgénero. Em termos
mediáticos, há cada vez maior visibilidade. Disso são exemplo a série americana
Orange is the New Black, que tem como uma das protagonistas a actriz transexual
Laverne Cox, ou o filme O Clube de Dallas (2013), de Jean-Marc Vallée, em que o
actor Jared Leto deu corpo a uma mulher transexual, o que lhe valeu um Óscar
para Melhor Actor Secundário e um Globo de Ouro na mesma categoria. O mesmo se
diga da emergência de manequins transexuais no Brasil, como a já famosa Lea T e
a recém-chegada Carol Marra, ou ainda, entre nós, da participação do transexual
mulher-para-homem Lourenço Ódin Cunha no reality show da TVI Casa dos Segredos
4, no ano passado.
Será
que a temática trans inicia agora um percurso idêntico ao já feito pelos
homossexuais, a caminho de uma visibilidade que se torne normalizante? “Estamos
a abrir a porta”, responde Susan Stryker ao QI. “Há hoje mais oportunidades
para algumas pessoas transgénero chegarem ao espaço público: as que consigam
incorporar normas e ideais dominantes, como ser branco e monogâmico, ter um
corpo elegante e aparentar normalidade social. Outras pessoas continuarão a ser
marginalizadas. Penso que antigamente quem quer que fosse trans estava sujeito
a opressão. Agora, a comunidade começa a polarizar-se em dois grupos: os mais
fracos e os menos fracos de entre os trans.”