domingo, 5 de outubro de 2014

O casamento gay de um católico

Bruno Horta já leu o novo livro de José António Almeida. É um olhar sobre os acontecimentos de Janeiro de 2010. 

Quatro anos passados sobre a entrada em vigor da lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, está na altura de reflectir sobre o tema e apresentar um testemunho daqueles dias. Assim terá pensado o poeta e escritor José António Almeida, cujo novo livro, Memória de Lápis de Cor, faz um balanço muito pessoal daquilo a que ele chama “uma nova realidade que destrona arcaicas ficções delirantes e homofóbicas”. 

A capa cor-de-rosa, quase infantil, não deixa adivinhar o que as 47 páginas do livro exibem. O percurso do autor, marcado pela ficção e poesia, também não. Memória de Lápis de Cor, oitavo livro de quem começou a publicar em 1984, é diário, é crónica e são memórias. Não há poesia, apenas ideologia.

Nascido em 1960, declara-se “católico de condição homossexual”. A vivência no Alentejo profundo (vila de Cuba) leva-o a concluir que “a situação dos homossexuais melhorou um pouco na capital e noutras cidades durante os últimos anos mas continua muito complicada ou bastante difícil nas aldeias, vilas e pequenos centros urbanos.”

O artigo 13º da Constituição portuguesa, que desde 2004 inclui a orientação sexual como característica em função da qual ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado, é “insuficiente, por demasiado abstracto”, escreve José António Almeida. O casamento gay, aprovado a 8 de Janeiro 2010, esse sim, “constitui a mais sábia, prudente e segura maneira de prevenir crimes de natureza vária contra qualquer homossexual vivo ou por nascer”. Acrescenta: “A já principiada institucionalização universal do casamento entre pessoas do mesmo sexo produz um efeito de homologação entre hétero e homossexuais.”

Numa obra que parece ser a primeira do género a pensar à distância as alterações do Código Civil em 2010 são lançadas farpas aos que vêem o casamento como uma “imposição uniformizadora da diversidade homossexual” (argumento de sectores feministas e de esquerda, segundo os quais o casamento é uma instituição retrógrada e os homossexuais não deveriam querer pertencer-lhe).

Sobre política partidária, o livro recorda que o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista foram os únicos a inscrever explicitamente nos seus programas eleitorais de 2009 a promessa de aprovação do casamento (mas José António de Almeida omite que num primeiro momento, em 2008, o Partido Socialista votou contra o casamento gay e em 2010 recusou a parentalidade aos homossexuais).

Sobre a Igreja, lê-se que “a mais purpurada hierarquia católica e os católicos fundamentalistas do mundo inteiro permanecem incapazes de compreender que é possível viver de amoroso modo a condição homossexual como forma de bem-aventurança”.

Por isso, José António de Almeida deixa o vaticínio: “O próximo grande passo rumo à vitória da liberdade e ao triunfo do amor parece ser o casamento religioso entre pessoas do mesmo sexo.” Eis a ideia nova que o livro contém.

[textos publicado na Time Out Lisboa de 20 de Julho de 2014, p. 64]