FACTOS
O Público de 6 de Agosto pubicou uma entrevista com o juiz-conselheiro Fernando Pinto Monteiro, ontem nomeado Procurador-Geral da República. Toma posse a 9 de Outubro, substituindo Souto Moura.
"Só pode ser juiz quem deve e não quem quer"
POR PAULA TORRES DE CARVALHO (TEXTOS) E NUNO FERREIRA SANTOS (FOTOS) [fotos publicadas na edição impressa do jornal]
POR PAULA TORRES DE CARVALHO (TEXTOS) E NUNO FERREIRA SANTOS (FOTOS) [fotos publicadas na edição impressa do jornal]
O acesso à presidência do Supremo é um "sistema viciado", do qual o poder político tem conhecimento, mas sobre o qual tem evitado falar, considera o juiz-conselheiro Pinto Monteiro, que defende a proibição de os juízes terem filiação partidária e reclama um Conselho Superior da Magistratura com regras que se apliquem a todos, em todas as circunstâncias.
A "falta de humildade" dos magistrados em início de carreira é uma das questões que mais preocupa o juiz-conselheiro Fernando Pinto Monteiro, recentemente eleito para representar Portugal na primeira Comissão Ibero-americana da Ética Judicial.
No que respeita à ética, ou à falta dela, dos juízes portugueses, o que mais o preocupa?
A falta de humildade de quem começa, para aprender. A justiça só existe para servir o público. Deve ser exercida em nome do povo, como diz a Constituição. O que acontece hoje é que temos a convicção de uma justiça que está acima de tudo, quando os juízes são homens que estão numa função sobre-humana, que é julgar homens iguais. Mas nunca partindo de uma ideia de grandiosidade que se instalou na magistratura portuguesa, fundamentalmente ao nível de quem começa. Essa ideia de grandiosidade tem prejudicado a imagem da magistratura. O que mais me preocupa é o facto de, neste momento, este Governo, ou qualquer outro, se fizesse um referendo, teria 80 a 90 por cento do povo português contra os juízes, que são a face aparente da justiça.
Atribui essa impopularidade à conduta dos juízes?
Claro que sim. À conduta dos juízes, do Ministério Público, do Governo, dos ministros da Justiça que temos tido, dos advogados, dos solicitadores... O desprestígio da justiça tem passado por todos. E agora, este Governo, ou qualquer outro, toma as medidas que quiser contra a magistratura e tem o aplauso da esmagadora maioria do povo português.
Um dos artigos do recente código ibero-americano de ética judicial consagra o "dever de cortesia" para com os juízes, o que considera uma "coisa linda"...
Quando eu era juiz na Ponta do Sol, na Madeira, as pessoas que estavam sentadas nas escadas da igreja levantavam-se com o chapéu na mão quando eu passava a caminho do tribunal. Hoje ninguém faz isso, nem é exigível que o faça. Mas também não se pode partir do contrário. Agora, se for preciso, atiram-se pedras... O que tem de haver é um equilíbrio.
Não há uma contradição quando diz, por um lado, que há falta de cortesia e, por outro lado, critica a falta de humildade por parte dos juízes?
Não, a falta de humildade gera a falta de cortesia. As pessoas julgam-se importantes que pensam que não têm de atender os outros como se fossem seus iguais. Quando eu tinha estagiários dizia-lhes para se levantarem para falarem com a mulher da limpeza. Hoje, penso que a maior parte dos juízes não se levanta nem perante o Presidente da República... Isto não pode ser. Como explica Peter Singer num famoso livro sobre o lugar que a ética ocupa numa época de individualismo, a ética passa, principalmente, pelo respeito pêlos outros, essa é a sua essência.
No âmbito da justiça, há falta de respeito pelos outros?
A todos os níveis. Uma falta de respeito do poder executivo pelo poder judicial, uma falta de respeito do poder judicial por alguns dos cidadãos, que não são convenientemente atendidos. Há uma falta de respeito mútuo que gera o desprestígio da justiça, que se vai reflectir no desprestígio do poder executivo. Hoje é moda dizer mal da justiça, mas essa moda reflecte-se no Estado de Direito. Um investidor estrangeiro vai investir num país onde se diz tão mal da justiça, onde sabe que nunca mais se cobram dívidas? A justiça funciona mal mas empolaram de tal forma o funcionamento mau da justiça, com o apoio de toda a gente, que não sei como é que vão descalçar esta bota...
Acha que os princípios de que o magistrado deve cultivar uma certa humildade e respeito pelos outros têm sido transmitidos no Centro de Estudos Judiciários (CEJ)?
Penso que não foram transmitidos de uma forma suficientemente clara e evidente.
Não foram e não são?
Não sei exactamente como funciona o CEJ hoje. Mas o CEJ do qual fiz parte, na comissão de gestão, durante nove anos, bem como no conselho pedagógico, não transmitiu essa imagem.
Porquê?
Os tempos eram outros... Criou-se a ideia de uma certa grandiosidade do juiz, quase como um faraó... Hoje, penso que isso está a ser alterado, mas vai demorar muitos anos a contrariar.
Qual a sua opinião sobre o desempenho de cargos públicos e políticos por magistrados?
Penso que os magistrados só devem desempenhar cargos políticos ou públicos que não interfiram de maneira nenhuma com a sua função. Por exemplo, não devia ser permitido a nenhum juiz inscrever-se num partido político. E há muitos juízes inscritos em partidos.
E quanto aos cargos de confiança política, como o de director da PJ, dos serviços de segurança, dos serviços de estrangeiros?
Não acho mal que a Judiciária tenha directores magistrados, acho que até oferece uma garantia de isenção. Quanto aos outros, tenho muitas dúvidas, por causa da dependência política. O que penso é que o magistrado tem de suspender a sua função e estar afastado da magistratura se desempenhar algum desses cargos.
Acha que os juízes são devidamente controlados pelo Conselho Superior da Magistratura no que respeita às regras de conduta?
Não, o CSM não controla rigorosamente nada. Faz um controlo meramente formal, quando tem de ser implacável.
E não é?
Não tem sido.
Qual é a forma ideal de fazer essa fiscalização?
Não tenho nenhum remédio. O CSM tem de ter uma visão aberta, não de classe corporativa que deve ser defendida pela associação sindical. O CSM não pode actuar como uma associação sindical, assim como o Supremo não pode. Tem de haver uma garantia da independência, da seriedade, da honestidade dos juízes.
Considera que essa garantia é frágil?
Eu não duvido que a seriedade exista entre os juízes portugueses, mas é preciso que transpire lá para fora, que as pessoas das aldeias, os camponeses, os agricultores, os motoristas de táxi acreditem nisso e hoje não acreditam. Aqui há tempos apanhei um táxi para me levar à Ordem dos Engenheiros. O motorista, que já era um senhor de uma certa idade, passou a tratar-me como 'senhor engenheiro'. E eu, que tanto me dá ser engenheiro como outra coisa qualquer, fiquei calado. Ele tinha o rádio ligado e deu uma notícia sobre a Casa Pia e o homem virou-se para mim e disse: 'o senhor engenheiro já viu a porcaria da justiça que temos?' E eu calei-me, claro, não tinha nada a ver com isso, era engenheiro... Cheguei aos meus colegas e disse: 'O que vale é ser engenheiro porque os juízes estão muito desacreditados'. É preciso inverter isto. Temos de ter um CSM com regras que se apliquem a todos, da mesma forma, em todas as circunstâncias. Tudo o que seja corrupção, falta de isenção, falta de ética, deve ser punido severamente. Só pode ser juiz quem deve e não quem quer.
Por que razão não concorda com o sistema actual de eleição do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ)?
Uma das funções que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) tem é a graduação dos juízes que ascendem a conselheiros do STJ. Como é que eles chegam ao Supremo? Através de um concurso, de trabalhos que são apreciados pelos membros do CSM. Entre esses membros há um juiz eleito para presidente que, obviamente, se faz parte de uma lista de sete, tem de ter um certo controlo sobre eles. Não passa pela cabeça de ninguém que não sejam da sua confiança. Esse homem é um homem-chave na graduação, toda a gente sabe isso. Ninguém o diz, mas toda a gente sabe isso. Eu não ponho em causa as pessoas, é tudo gente séria e isenta. O que está em causa é o sistema.
Porque gera desigualdade, é isso?
Repare no que acontece. O vice-presidente do CSM é uma das figuras-chave na escolha dos conselheiros. Esse homem nunca devia poder concorrer ao Supremo, porque a verdade é que quem o vai eleger são as pessoas que ele graduou.
Está a dizer que é um sistema viciado?
É um sistema viciado. Dizer esta palavra parece que é um crime mas eu repito, não estão em causa as pessoas, é tudo gente séria e honesta, o problema é o sistema em si.
Defende então uma alteração das regras de acesso a presidente do STJ?
Sim, a forma como é feito este acesso suscita dúvidas e interrogações. É uma eleição que tem todo o aspecto de poder ser viciada. Se o é ou não, não sei... Mas é evidente que, se há alguém que tem um papel-chave na admissão de A ou de B a uma determinada empresa, quando têm de votar, votam em quem os admitiu.
Na sua opinião, de que forma é que este sistema deveria ser alterado?
Na minha opinião, quem fosse vice-presidente do CSM não devia poder concorrer ao Supremo. Em Espanha, por exemplo, o vice-presidente do CSM é nomeado pelas Cortes e nem sequer é juiz. Se aqui admitem a possibilidade de o vice-presidente do CSM se tornar presidente do Supremo, então não permitam é que as pessoas mudem de pele consoante queiram candidatar-se a certos lugares, isso é que não pode ser. Se falar com o poder político, com o Presidente da República, vai ver como sabem isso. Só que ninguém o diz, mas, em conversas privadas, admitem-no. E que isto se presta a um desprestígio enorme, presta.
Como explica que, recentemente, tenham sido anuladas graduações de juízes para o Supremo?
Foi a primeira vez, depois do 25 de Abril, em 30 anos, que houve quatro anulações de graduações. Porque as pessoas não acreditam nelas. Não será porque os dados estão viciados? É evidente, parece que é evidente
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As eleições para a presidência do STJ estão marcadas para 28 de Setembro. É um dos nomes apontados como candidato. Está receptivo a essa ideia?
Não sei, neste momento ainda não sei...
Está dependente de quê?
Sabe a história do Leónidas? Eram 300 espartanos contra dez mil persas no desfiladeiro das Termópilas. Claro que Leónidas morreu e os 300 espartanos passaram à história... Está-me a custar fazer de Leónidas, mas vou pensar nisso. Ainda não decidi nada. Já sei que foram publicadas notícias que me anunciam como candidato. Nunca disse a ninguém que era candidato. As notícias foram completamente inventadas ou envenenadas.