OPINIÃO
Luíz Pacheco (1925-), escritor libertário e homem libertino, reabilitado na cena pública, em parte, por uma série documental sobre ele que a RTP2 passou há poucos meses, tem no texto de que a seguir se cita um fragmento um momento de lucidez, dos que nos escritos dele não são raros. "O Recurso ao Medo", chama-se. Está no livro "Raio de Luar", dado à estampa há três anos pela Oficina do Livro. Vale a pena lê-lo.
O recurso ao medo
Num texto magistral e muito lúcido que, receio bem, não terá sido recolhido na obra em livro, José Régio expôs a terrível situação dos escritores portugueses durante a ditadura salazarista. Intitulava-se (se a memória me não atraiçoa, e não tenho a mínima hipótese de o verificar em Setúbal, cidade sob vários aspectos periférica em termos culturais) O recurso ao medo. Eram breves e dolorosas afirmações: Régio dizia que o fenómeno da Censura não dependia, apenas, dos organismos oficiais que a praticavam legalmente. E eram: a Comissão de Censura à Imprensa, — conheci esse coio de coronéis que usavam o lápis azul, habitaram durante anos por cima do meu emprego na Inspecção dos Espectáculos, Calçada da Glória; a PIDE; os tribunais; a Igreja Católica, cuja responsabilidade no antigo regime e nos seus aspectos mais pavorosos vejo bastante escamoteada, hélas! Régio acrescentava o lado mais grave e indignificante da situação: o medo gerado no espírito do escritor, na precisa altura em que criava. A censura, pelo medo, vivia nele, escritor; escrevia com ele. Logo: tolhia a liberdade íntima, total, do criador. Logo: castrava, modificava, aligeirava. O que me parece importante, fundamental, nessas declarações de Régio é que ele não era um escritor de militância política activa, como sabemos que seriam Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires, entre muitos outros menores. (Daqueles que cito atrás, alguns tiveram livros apreendidos, outros padeciam de vigilância rigorosa, de visto prévio da Comissão de Censura). José Régio, o qual de forma nenhuma se poderia identificar como escritor do regime, bem pelo contrário, pertencia a uma geração, a da presença, em que a actividade política temporal era excluída do acto criador; os livros de Régio não abordariam, de peito feito, temas que contundissem com os tabus do Regime. No entanto, ele sentia as malfeitorias do Medo, da Censura! e, numa atitude de desafronta de grande dignidade e coragem, denunciava-as. Apontava a situação de criador enrascado, diminuído nas suas capacidades, menorizado nas suas ambições criadoras, que seria a de qualquer outro escriba português contemporâneo. Da actividade da Comissão de Censura que morava por cima da Inspecção dos Espectáculos, dos seus praticantes que se encontravam comigo no elevador ou nas escadas, direi outro dia. Nem me é fácil falar disso, sem lhes rogar pragas..., tão-pouco me rir de certas das suas grotescas decisões. (…)
Num texto magistral e muito lúcido que, receio bem, não terá sido recolhido na obra em livro, José Régio expôs a terrível situação dos escritores portugueses durante a ditadura salazarista. Intitulava-se (se a memória me não atraiçoa, e não tenho a mínima hipótese de o verificar em Setúbal, cidade sob vários aspectos periférica em termos culturais) O recurso ao medo. Eram breves e dolorosas afirmações: Régio dizia que o fenómeno da Censura não dependia, apenas, dos organismos oficiais que a praticavam legalmente. E eram: a Comissão de Censura à Imprensa, — conheci esse coio de coronéis que usavam o lápis azul, habitaram durante anos por cima do meu emprego na Inspecção dos Espectáculos, Calçada da Glória; a PIDE; os tribunais; a Igreja Católica, cuja responsabilidade no antigo regime e nos seus aspectos mais pavorosos vejo bastante escamoteada, hélas! Régio acrescentava o lado mais grave e indignificante da situação: o medo gerado no espírito do escritor, na precisa altura em que criava. A censura, pelo medo, vivia nele, escritor; escrevia com ele. Logo: tolhia a liberdade íntima, total, do criador. Logo: castrava, modificava, aligeirava. O que me parece importante, fundamental, nessas declarações de Régio é que ele não era um escritor de militância política activa, como sabemos que seriam Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires, entre muitos outros menores. (Daqueles que cito atrás, alguns tiveram livros apreendidos, outros padeciam de vigilância rigorosa, de visto prévio da Comissão de Censura). José Régio, o qual de forma nenhuma se poderia identificar como escritor do regime, bem pelo contrário, pertencia a uma geração, a da presença, em que a actividade política temporal era excluída do acto criador; os livros de Régio não abordariam, de peito feito, temas que contundissem com os tabus do Regime. No entanto, ele sentia as malfeitorias do Medo, da Censura! e, numa atitude de desafronta de grande dignidade e coragem, denunciava-as. Apontava a situação de criador enrascado, diminuído nas suas capacidades, menorizado nas suas ambições criadoras, que seria a de qualquer outro escriba português contemporâneo. Da actividade da Comissão de Censura que morava por cima da Inspecção dos Espectáculos, dos seus praticantes que se encontravam comigo no elevador ou nas escadas, direi outro dia. Nem me é fácil falar disso, sem lhes rogar pragas..., tão-pouco me rir de certas das suas grotescas decisões. (…)