No "Público", ontem:
Hitler e Gandhi queriam mudar o mundo através do consumo de vegetais. E os portugueses na Índia acreditavam que perderiam a virilidade se se tornassem vegetarianos. Teses polémicas de um novo livro
A cena é famosa. Abril de 1945, Hitler já derrotado e enlouquecido, com os soviéticos à porta do bunker, numa Berlim em estado de sítio, janta com Eva Braun, a amante com quem acabara de casar. "A sua última refeição vegetariana, de esparguete com molho de tomate", descreve Tristram Stuart, autor do livro sobre vegetarianismo The Bloddless Revolution (A Revolução Sem Sangue), agora publicado nos EUA. Só depois, as doses fatais de cianeto. para ele, para ela e para a cadela de estimação, Blondi.
Ao que garante Stuart, foram os dentes amarelecidos de Hitler, típicos de um vegetariano, que mais tarde permitiram aos médicos forenses russos que examinaram o cadáver carbonizado comprovar a sua identidade. Tristram Stuart não hesita na conclusão: "Adolf Hitler era vegetariano ou, pelo menos, partilhava a filosofia vegetariana e punha-a quase sempre em prática."
O ditador deixou de comer carne em 1911, por causa de constantes dores de estômago, e, nos anos que se seguiram, "acreditou sempre que essa abstinência o aliviava da flatulência crónica, da prisão de ventre, dos suores, da tensão nervosa e dos espasmos musculares". Acreditava, sobretudo, que o consumo de vegetais, incluindo entre os militares, seria determinante para a vitória moral e bélica da Alemanha sobre o resto do mundo.
O livro, que tem como subtítulo Uma História Cultural do Vegetarianismo de 1600 à Era Contemporânea, inclui nada menos do que 65 páginas de bibliografia. Em relação às teses sobre Hitler são citados vários historiadores e um diário de Goebbels de 1942: "Ele [Hitler] acredita mais do que nunca que comer carne é maléfico para a humanidade", escreveu o chefe da propaganda nazi.
Pura invenção
Convém, a propósito, referir que há quem defenda o contrário. Rynn Berry, por exemplo, membro da North American Vegetarian Society, garante no livro Hitler: Neither Vegetarian nor Animal Lover, publicado há três anos, que a ideia de que o Führer era vegetariano e amigo dos animais foi forjada precisamente por Goebbels.
À parte esta discussão, uma das ideias mais polémicas de The Bloodless Revolution é a de que o vegetarianismo de Hitler estaria relacionado com o de Mahatma Gandhi (1869-1948), o homem que levou a Índia à autodeterminação e que se recusava consumir carne como parte da sua filosofia de não-violência (contra os outros animais, neste caso).
O autor diz que o vegetarianismo "não pode ser conotado com quaisquer pontos de vista políticos", porque foi usado por quase todos para explicar realidades muito diferentes. Ainda assim, diz que livros sobre o líder espiritual indiano foram encontrados na biblioteca pessoal do Führer e que até a imagem de austeridade e sacrifício em benefício da pátria que Hitler quis para si "pode ter sido inspirada por Gandhi". Tal como este, também aquele tinha integrado na sua doutrina reflexões do famoso economista britânico Thomas Malthus (1766-1834).
Uma questão ideológica
Stuart vai atrás no tempo e sugere que algumas diferenças ideológicas entre a esquerda e a direita estão ligadas ao vegetarianismo. Porque comer apenas vegetais implica consciência política. No século XVIII, escreve, nasceram no Ocidente duas filosofias sobre os instintos predatórios dos humanos e a compaixão pelos outros animais. A de que o homem tem uma necessidade brutal de autodefesa, logo, de fazer a guerra; e a de que apesar dessa violência, tenderá sempre para a contenção e a misericórdia.
A primeira é do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679; autor de Leviathan) e dela nasceu o caldo cultural que originou a ideologia de direita, sustentada, também, na teoria da evolução de Darwin e em princípios defendidos por Malthus. A segunda é do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-78) e originou em parte o pensamento de esquerda, que também adoptou e adaptou Darwin. A estes, juntaram-se os filósofos Descartes e Francis Bacon, na construção daquilo a que o autor de The Bloddless Revolution chama "vegetarianismo científico", porque baseado em reflexões próprias e em argumentos relativos à anatomia do corpo humano. Tristram Stuart sublinha, contudo, que será o contacto com a Índia que lhes dará garantias práticas de que negar a carne é saudável. A Índia, conclui, foi o país que nos últimos 400 anos mais influenciou a Europa em termos alimentares e até ideológicos.
A resistência de Fernandez
Nesta revolução sem sangue, encontramos, ainda, muitos portugueses - por via da ligação à Índia. Fala-se de Camões, de que é citado um excerto de Os Lusíadas; de Vasco da Gama, que começou a perceber que os indianos não eram cristãos quando viu que não comiam carne ou peixe, e de Garcia DOrta, cujas descrições sobre a Índia foram importantes para quem na Europa moderna se dedicou a construir a doutrina vegetariana.
Maior destaque, contudo, têm os portugueses que no século XVI, em nome de Deus, foram para Ceilão (Sri Lanka). Gonçalo Fernandez, um antigo soldado tornado missionário jesuíta, é um deles. Serve de exemplo à resistência ocidental perante o vegetarianismo indiano.
Vivia entre hinduístas tâmil e dedicava-se a escarnecer desse estranho hábito local que era o de comer somente arroz, fruta e vegetais.
O jesuíta não queria adoptar hábitos que considerava pagãos e achava que a abstinência de carne dos hindus se devia à crença de que todas as almas reencarnavam - por isso, comer animais mortos iria desviá-las do percurso natural. Além disso, tal como muitos colonizadores europeus e missionários, continuava, lá, a comer carne e a beber álcool para não se deixar contaminar pela alegada feminilidade dos nativos, que só poderia ficar a dever-se à ausência destes hábitos alimentares viris.
Fernandez seria de tal forma obstinado que chegou a fazer queixa a um enviado do Papa, em 1610, dos comportamentos alimentares do missionário e aristocrata italiano Roberto de Nobili, que, uma vez chegado, se tornara vegetariano. Nobili alegou que o fizera apenas para se integrar na comunidade e melhor a converter ao cristianismo, e que já S. Francisco Xavier tinha usado essa técnica. O Papa Gregório XV deu-lhe razão, em 1623.
The Bloddless Revolution tem 628 páginas e é publicado pela editora nova-iorquina W.W. Norton, depois de uma primeira edição britânica no ano passado. Uma obra "excepcionalmente detalhada" e com "uma vasta recolha das justificações académicas pró e contra o consumo de carne", escreve a revista The New Yorker. O autor é um jovem britânico licenciado em Literatura Inglesa pela Universidade de Cambridge, a trabalhar na Índia como publicista. Stuart diz no livro que se considera um ecologista. O Observer resume que, não sendo vegetariano, se recusa a comer carne. B.H.