domingo, 17 de junho de 2007

"É errado celebrar a vida devassa de Cesariny"

Excerto da entrevista de Alexandra Lucas Coelho com o escritor Luís Amorim de Sousa, na "Pública", hoje:


Disse que o seu tio Paco era poeta. Publicou?

Um livro de sonetos. O nome que usava era Mário Ermo. Um escandaloso, homossexual numa altura em que era impensável um homossexual manifestar-se...

Mas assumido?
Assumidissíssimo! Mas de uma forma teatral. Era um fazedor de "happenings".

Como Mário Cesariny?
Não. Uma espécie de Rainha-mãe do Mário Cesariny. Nada o mesmo género. O Mário Cesa­riny era um homem da noite, o meu tio Paço tinha um comportamento de fidalgo. Gostava imenso de soirés, e tinha um sentido do ridículo atroz.

Mas isso onde?
Nas várias casas onde morava. Estava proibido de entrar na Junqueira por causa dos escândalos. E tinha sido criado lá, mas a Junqueira era uma casa victoriana. O tio Paco era um actor prodigioso. Tinha uma belíssima voz, cantava maravilhosamente, falava todas as línguas incluindo francês, um espanhol impecável, escrevia versos em espanhol, e era um grande fazedor de acontecimentos totalmente inesperados. Saía à rua, e havia o burro do homem das hor­taliças que andava por Lisboa, ele dirigia-se ao burro, sugeria que eu lhe fizesse uma vénia pro­funda porque era nosso parente, ele era muito amigo de animais, e o homem desbarretava-se todo, e ele: "Não é consigo, é com o nosso primo, da nobre família dos equídeos." Está a ver o que isto é na Lisboa daquela época, 1940 e tal. O tio Paco alegrou imenso a minha vida, porque era um excêntrico extraordinário. Gostava imenso da gente do povo, e deve ter tido variadíssimos casos com a gente do povo. Mas o mundo do tio Paco era muitíssimo mais amplo que o de Mário Cesariny. Não quero falar muito do Mário, por­que se está a celebrar o lado errado dele, que é um poeta admirabilíssimo, a quem todos nós devemos imenso, mas o que se celebra nele é a vida devassa que terá levado.

Não acha que se celebra tudo?
Espero que sim, o extraordinaríssimo poeta que ele foi e pintor muito interessante. Tenho uma coisa dele muito bonita aí atrás de si, que ele me deu. Mas o tio Paco vivia num espaço físico mais amplo. Era um homem de sociedade, que ao mesmo tempo tinha uma noite sabe-se lá por onde, que andava nas redacções de jornais, também. E um dia, apareceu-me lá em casa com o António Botto. O António Botto começou a dizer poesia e percebi que a poesia tinha um efeito mágico encantatório. Ouvir o Antó­nio Botto a dizer versos é uma coisa que não se esquece. Eu estava vagamente a brincar e fiquei extasiado com as palavras que ele dizia e eu nem percebia muito bem. A magia abso­luta das palavras da língua portuguesa, magia indizível, sensação para mim eterna.