sábado, 22 de setembro de 2007

Traduções recentes

"(...) quando ficaram sozinhos um sábado à tarde no final de Março, com fortes bátegas de chuva a cair fora das janelas e a sala de estar desarrumada da casa minúscula dos pais dele nas Chiltern Hills, ela deixou a mão poisar por breves instantes em cima, ou perto, do pénis dele. Durante menos de quinze segundos, com uma esperança e um êxtase crescentes, ele sentiu-a através de duas camadas de tecido. Mal ela retirou a mão, ele percebeu que não poderia suportar aquilo durante mais tempo. Pediu-lhe para casar com ele."
Ian McEwan
"Na Praia de Chesil"

Gradiva, Abril 2007; trad. Ana Falcão Bastos



"Estava a brincar com o pensamento. Era com o que mais brincava. Não tinha mais ninguém com quem brincar. Brincava a pensar em catástrofes, acidentes, doenças, mortes e outros danos irreparáveis. Então regozijava. Era um consolo que tudo pudesse ser pior, muito pior. Se o apartamento ardesse, por exemplo, na véspera de Natal, a árvore podia pegar fogo e tombar por cima dos presentes e eu era o único sobrevivente e era encontrado nos escombros carbonizados da mãe e de Fred e de Boletta e tinha de ficar deitado ligado a uma máquina para respirar durante pelo menos três meses, enquanto dezoito médicos lutavam pela minha vida e pelo que restava de mim, então, a música seria outra. Seria, seria. Então, a maioria das pessoas que tinham feito pouco de mim iam ficar com tantos remorsos que viriam de joelhos pedir perdão, e eu, na minha dolorosa generosidade, iria dar-lhes o perdão, e os jornais iriam estar cheiros de artigos sobre a minha sina, livros seriam escritos sobre mim, realizados filmes, quadros pintados e óperas compostas e, na verdade, essa era a única coisa com que sonhava: que tudo ia ficar diferente, diferente do que era."
Lars Saabye Christensen

"Meio-irmão"

Cavalo de Ferro, Junho 2007; trad. Sissel Bjornstad Cardona


"O meu pai está bem agasalhado do frio com luvas sem dedos, um gorro de lã e três pares de meias. Inclina-se para a frente na cadeira, lendo com os óculos grossos. Atrás dele, na prateleira do fogão de sala, está um retrato da minha mãe. Ela está a olhar por cima do ombro dele, na direcção dos campos e do horizonte. Por que razão se casou com ele, esta jovem mulher de pensativos olhos castanhos, cabelo ondulado, penteado em tranças, e sorriso misterioso? Ele era um jovem engenheiro intrépido e atraente? Seduziu-a com conversas de transmissão automática e presentes de óleo de motor?"
Marina Lewycka
"Breve História dos Tractores em Ucraniano"

Civilização Editora, Julho 2007; trad. Isabel Alves