quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"Os deputados suecos, dinarmarqueses e britânicos responderam prontamente, os deputados portugueses quiseram saber qual seria o teor"

Entrevista com Gustavo Sampaio sobre o livro Os Privilegiados

Preparava-me para escrever aqui no blogue sobre o livro Os Privilegiados, quando me apercebi de que tinha dúvidas sobre a forma como o livro foi escrito e pensado. Achei, por isso, que deveria enviar algumas perguntas ao autor, através de email. Gustavo Sampaio aceitou responder (os sublinhados são meus).
Jornalista freelance, nascido em Coimbra em 1982, Gustavo Sampaio demorou oito meses a escrever o volume. Trata-se de uma extensa investigação sobre a corrupção na política portuguesa: os privilégios que a classe dirigente criou para si mesma e as relações perigosas entre servidores da coisa pública e os interesses privados ou de facção.



Pergunta: Estamos perante um livro usa a técnica do jornalismo de dados, com a vantagem de que os dados não estavam desagregados ou em formatos digitais de difícil acesso: são públicos e estão tratados. Como jornalista freelance achas que era possível escrever um livro assim se não tivesses tido acesso a bases de dados da administração pública como as que hoje existem?
Gustavo Sampaio: Nem todos os dados estavam agregados e tratados, tive que ir buscar muita coisa dispersa e em bruto ao Diário da República ou através de meios informais, tais como a pesquisa em motores de busca na Internet, contactos com fontes e colegas jornalistas, recortes de imprensa, etc. As bases de dados da administração pública na Internet (nomeadamente o portal Base) são uma ferramenta essencial, mas importa ressalvar que têm falhas, muitas vezes apresentam informações desactualizadas, incompletas ou até erradas. Tornam mais fácil o cruzamento de dados mas implicam uma redobrada atenção, um redobrado esforço de confirmação da informação. Mais informação não significa forçosamente melhor informação. Aliás, em algumas situações acabei por contribuir para a correcção de datas, valores ou outros elementos referentes a contratos por ajuste directo registados no portal Base, depois de contactar as entidades públicas adjudicantes que indicaram os erros e introduziram alterações nos registos. Se teria sido possível escrever o livro sem o acesso a essas bases de dados? Julgo que sim, mas com um maior grau de dificuldade e sobretudo com uma maior exigência de tempo e disponibilidade. O jornalismo de investigação já existia antes do advento da Internet e não é líquido que tenha melhorado de qualidade desde então. Li recentemente uma entrevista de Fernando Dacosta ao jornal i e fiquei fascinado com a descrição da actividade jornalística em Portugal na década de 1970. Era um mundo completamente diferente, com outros paradigmas, uma mistura de Norman Mailer com John le Carré e Evelyn Waugh, sem telemóveis nem computadores, as redacções dos jornais eram espaços vivos e criativos, não eram linhas de montagem com demasiada parafernália electrónica. Hoje "o meio é a mensagem".

Sei que especialmente para um jornalista freelance é difícil chegar a algumas fontes, porque em Portugal poucas pessoas sabem o que é um freelance ou estão dispostas a falar sem terem a garantia de que as suas palavras vão sair no sítio "x" ou "y". Tiveste esse tipo de problemas?
Os deputados suecos, dinarmarqueses e britânicos que contactei responderam-me prontamente, sem se importarem minimamente com o facto de se tratar de um jornalista português ou de um jornalista freelance. Identifiquei-me como jornalista e referi que estava a fazer um trabalho de investigação (sem sequer indicar se seria para publicar num jornal, numa revista ou num livro). Há que enaltecer a abertura, disponibilidade e interesse em responder às minhas questões por parte desses deputados de países estrangeiros. Relativamente aos deputados portugueses, muitos responderam, outros não responderam. Alguns quiseram saber mais sobre o trabalho de investigação, colocando questões sobre o órgão de comunicação social para o qual eu estaria a trabalhar, sobre qual seria o teor do artigo, entre outros detalhes. Recordo o caso da deputada Ana Paula Vitorino que quis saber em que órgão de comunicação social é que eu trabalhava e onde é que o trabalho de investigação seria publicado. Indiquei que era um jornalista freelance e que só depois de concluído o trabalho é que o iria propor para publicação. Ana Paula Vitorino não voltou a responder aos meus contactos e é um dos casos referidos no livro que não apresentam contraditório por exclusiva responsabilidade dos visados.

Em particular na introdução, o texto é palavroso e solene. Porquê? É o teu estilo ou procuraste falar especialmente para a classe visada, a dos políticos?
Em geral, optei por utilizar uma linguagem crua, factual e incisiva, por vezes desprovida de qualquer emoção, como quem faz uma autópsia. Não por ser o meu estilo, mas por considerar que seria o estilo mais adequado para este trabalho. Evitei os juízos de valor, as certezas absolutas e as sentenças definitivas. Na minha perspectiva, já há demasiada opinião no espaço público, demasiado ruído, em detrimento de informação factual com qualidade, informação rigorosa e contextualizada. Volto a recordar a entrevista de Fernando Dacosta ao jornal i, destacando uma interessante analogia entre a censura da ditadura e a desinformação ruidosa da democracia: "A censura prévia controla pelo corte e pelo silêncio, a democracia é pelo contrário, controla pelo chinfrim." Não quis contribuir para esse ruído opinativo, até porque não é essa a função primordial de um jornalista. A objectividade absoluta é uma impossibilidade prática, mas deve ser esse o caminho, mesmo que nunca cheguemos a alcançar o destino. Mais, não quis dizer ao leitor o que deve pensar, mas levá-lo a pensar. Nesse sentido é um livro aberto a interpretações díspares. Relativamente ao texto da introdução, apesar de diferir do estilo utilizado no resto do livro, não concordo que seja "palavroso e solene", nem que se dirija especialmente à "classe visada". Tento explicar as motivações que levaram à concepção do livro, colocando de parte ideias populistas e demagógicas que, na minha opinião, são extremamente perigosas e nocivas para a democracia liberal. Ressalvo, por exemplo, que há bons e maus políticos. Alerto contra a injustiça das generalizações. Explico que não se trata de um libelo acusatório contra os políticos, os partidos, a política (entendida para além do paradigma maquiavélico). É um texto curto, honesto, munido de alguns elementos conceptuais. Em contraste com o resto do livro, a introdução é mais subjectiva. É um convite à leitura do livro que não exclui ninguém à partida, desde logo os visados.

Parece que alguns destes textos já tinham sido publicados anteriormente. Já os tinhas investigado, pelo menos. É correcto? Porque é que isso não está explicado aos leitores de forma clara? No caso dos exemplos de contratos entre o Estado e privados, porque é que não está explícita a fonte de informação?
Dois artigos que publiquei na revista Sábado sobre conflitos de interesses no Parlamento e um artigo que publiquei na revista Exame sobre ex-políticos nas administrações de grandes empresas serviram como base de trabalho para este livro. Relativamente aos conflitos de interesses, os dois artigos da revista Sábado foram publicados numa fase inicial da actual legislatura, quando os deputados ainda não tinham actividade parlamentar substancial. Cerca de dois anos mais tarde, durante a concepção do livro, foi possível verificar se existiam ou não indícios de conflitos de interesses na actividade parlamentar dos deputados, não em abstracto mas na prática. Ou seja, foi possível aprofundar e concretizar a investigação. De um artigo de cinco páginas numa revista, com nove casos (e outro de uma página, com três casos), foi possível passar para 60 páginas num livro, com 34 casos apresentados. A utilização desses artigos como base de trabalho está bastante explícita no livro, através da comparação, no próprio texto, entre determinadas declarações dos deputados em 2011 (quando foram contactados para esses artigos na revista Sábado) e em 2013 (quando voltaram a ser contactados, durante a concepção do livro). Aliás, esse distanciamento temporal, entre 2011 e 2013, é o que permite aprofundar a investigação e descobrir claros indícios de conflitos de interesses em muitos dos 34 casos apresentados no livro. Relativamente ao artigo da revista Exame, como é evidente, os dados estavam completamente desactualizados. Mesmo durante o período concepção do livro, cerca de oito meses, tive que alterar sucessivamente os dados, porque há constantes alterações na composição dos conselhos de administração e demais órgãos sociais das grandes empresas. A utilização de alguns elementos desse artigo também está explícita no livro, basta ler as notas. Quanto aos "contratos entre o Estado e privados", a fonte de informação é igualmente explícita. O portal Base é sucessivamente referido ao longo do texto. As notas também contêm informação pormenorizada sobre os contratos. Só não coloquei ainda mais informação sobre os contratos porque me pareceu que seria redundante.

Relatas casos escandalosos de acumulação de funções (deputados que têm interesses no sector privado) e de transferências de ex-ministros para empresas ou áreas da economia que tinham tutelado. Demonstras, ao comparar as benesses dos deputados portugueses com as de outros deputados de países europeus, que os nossos legisladores são uma casta à margem da restante sociedade. Não houve momentos, durante a investigação e a escrita, em que te indignaste ou revoltaste com aquilo que descobrias? Ou essa indignação já existia e daí o livro?
Não parti para esta investigação com ideias pré-concebidas e não quis dizer ao leitor o que deve pensar, mas tão-só levá-lo a pensar sobre as matérias que abordo no livro. Deixei esse espaço de interpretação aberto, por respeito para com a inteligência do leitor. Teria sido muito fácil inflamar ainda mais o sentimento anti-política e anti-políticos que se tem disseminado entre a população portuguesa. Ceder a ideias populistas e demagógicas. Repare que nem sequer faço referência aos salários dos ex-políticos referentes aos cargos de administração que exercem em grandes empresas. Mais, dou voz a duas opiniões dissonantes, João César das Neves e Maria do Carmo Seabra, no que respeita à questão sobre quais as motivações que levam as grandes empresas a contratar ex-governantes para cargos de administração. Teria sido muito fácil encontrar dezenas de opiniões no mesmo sentido: tráfico de influências, troca de favores, corrupção. Optei por um enquadramento jornalístico dessa indignação que está a afligir a população portuguesa. Ou seja, assumi o papel de jornalista e observador, não o papel de actor político e indignado, não por falta de convicções políticas ou indignações pessoais, mas em prol de um trabalho de investigação mais isento, rigoroso e honesto. E também por não ser um especial admirador do jornalismo engagée.

Em certas passagens senti falta de opiniões de especialistas ou comentários de psicólogos, sociólogos e politólogos. Porque é que optaste por um livro mais factual e menos interpretativo?
Muitas vezes essas opiniões de especialistas e comentários de psicólogos, sociólogos e politólogos só servem para encher páginas, para ilustrar os textos. Não obstante, devo reconhecer que gostei muito do discurso que o professor dr. José Adelino Maltez proferiu na sessão de apresentação do livro e que, se fosse hoje, teria tentado introduzir algumas das ideias desse discurso no livro, citando o professor dr. José Adelino Maltez. Mas aceito essa crítica, talvez pudesse ter utilizado mais opiniões especializadas (que não a minha) em alguns momentos do livro.

Porque é que optaste por colocar notas no fim do livro e não em rodapé. Não seria mais prático e útil para quem lê ter acesso imediato a essas mesmas notas?
Foi uma opção da editora. Preferia que tivessem sido colocadas em rodapé. Julgo que se terá tratado de uma questão de grafismo e paginação. Reconheço que seria mais prático em rodapé, a leitura seria mais fluida. E há que realçar que as notas contêm informação muito relevante, não devem ser ignoradas durante a leitura do livro.

Foste tu quem sugeriu este livro à editora Esfera dos Livros ou foi a editora que te contactou?
Propus alguns temas e "este" foi o que mais interesse suscitou à editora. Coloco "este" entre aspas porque no início não havia ainda uma ideia bem definida do que iria ser o livro, apenas uma série de matérias que eu me propus investigar. Algumas ficaram de fora, outras que não tinham sido propostas acabaram por entrar. Beneficiei de uma grande margem de manobra e liberdade criativa. Só tenho que agradecer à Esfera dos Livros que acreditou no meu projecto e na minha capacidade para o concretizar.

Uma vez que há uma gigantesca promiscuidade entre política e negócios, achas que o jornalismo económico, mais do que o jornalismo político tradicional, é hoje a chave para se entender a política portuguesa?
O ideal seria uma estreita cooperação entre os dois, "jornalismo económico" e "jornalismo político tradicional", utilizando as mais-valias e competências de ambos. A promiscuidade entre a política e os negócios é de tal ordem que Mário Soares, recentemente, fez questão de ressalvar: "Sou político, não falo de negócios!" É uma grande verdade, hoje em dia os políticos estão sempre a falar (e a tratar) de negócios.

Recebeste ameaças, pressões ou recados dos visados durante a investigação e a escrita ou mesmo depois da publicação do livro?
Mais do que ameaças, pressões ou recados dos visados fui sobretudo confrontado, insistentemente, com essa mesma questão sobre se recebi ameaças, pressões ou recados dos visados. Ou com declarações de "grande coragem" da minha parte. E isso preocupa-me. Não as ameaças, as cartas registadas que recebi, de facto, a anunciar potenciais processos no pântano dos tribunais. O que me preocupa é essa espécie de medo latente nas pessoas que as leva a temer pela minha segurança por ter publicado um trabalho de investigação jornalística sobre a classe política de um país democrático. Esse medo latente que desemboca facilmente na auto-censura, outra forma pós-moderna (além do "chinfrim" de Fernando Dacosta) da antiga censura prévia. Ora, não escrevi propriamente sobre a classe política de uma ditadura sanguinária, nem sobre a máfia siciliana, os meandros da Cosa Nostra ou da Camorra. Ainda não acordei com uma cabeça de cavalo na cama, aquela cena mítica da trilogia O Padrinho. Julgo que ainda vivemos numa democracia em Portugal. Aliás, os visados puderam exercer o direito ao contraditório. Não sou propriamente um jornalista russo a investigar sobre a Rússia de Putin ou a guerra na Tchetchénia. Por exemplo, Anna Politkovskaya, sim, foi uma mulher corajosa, uma excelente jornalista, até ser morta à porta de casa, baleada à queima-roupa. Se Politkovskaya não teve medo, sou eu que vou ter medo?