Impulso irresistível de controlar
Quinta-feira, dia 22, logo após o noticiário das oito da manhã da Renascença, os assessores do primeiro-ministro despertaram para um frenesim de telefonemas. A rádio dava eco à notícia do jornal ‘Público’ que levantava dúvidas em torno da licenciatura de José Sócrates na Universidade Independente. O pivô rematava a peça dizendo: “Engenheiro não! Licenciado... talvez”.
“Ligaram várias vezes para mim e para a redacção a protestarem”, contou ao Expresso o director de informação da Emissora Católica, Francisco Sarsfield Cabral. A frase que tinha provocado a ira do gabinete do primeiro-ministro não voltou a ser repetida.
A ‘gestão de proximidade’ da comunicação é, aliás, imagem de marca do actual Governo. No primeiro Natal que passou como chefe do Executivo, José Sócrates foi de férias para a neve. Na SIC-Notícias, o ministro da Presidência era entrevistado por Mário Crespo. A certa altura, Pedro Silva Pereira foi interpelado sobre que sentido faziam essas férias de luxo quando o Governo pedia sacrifícios aos portugueses por causa do défice. “O primeiro-ministro ficou furibundo e telefonou-me directamente”, recordou Ricardo Costa.
Não há partido de poder que se preze que não tenha a tentação de controlar os «media» e os jornalistas. A apetência do actual Governo não é pois menor que a de executivos anteriores. José Manuel Fernandes, director do ‘Público’, reconhece no entanto que existe hoje “um nível de sofisticação” maior do que noutros tempos. “Há uma gestão muito rígida da informação e um cálculo e controlo dos «timings» mais profissional”, acrescenta o director do ‘Público’.
Ricardo Costa e Francisco Sarsfield Cabral corroboram a tese do profissionalismo. “O padrão não é novo. O que há é uma gestão mais organizada da informação e uma maior capacidade de reacção a notícias más”, acrescenta o director da SIC-Notícias.
Na véspera da publicação da notícia sobre a licenciatura de Sócrates, o gabinete do chefe do Governo desencadeou uma acção preventiva junto de algumas redacções. “Houve logo telefonemas em que se dizia que aquilo não era assunto e que se houvesse dúvidas o gabinete estaria à disposição para esclarecer tudo”, sublinhou Ricardo Costa.
O director do ‘Público’, que mantém há vários anos uma relação conflituosa com o actual primeiro-ministro, revelou ao Expresso ter “indicações provenientes de uma conversa que mantive com alguém do gabinete do primeiro-ministro que me levam a pensar que, pelo menos com uma rádio, pode ter havido um pedido para que a história da licenciatura não fosse reproduzida”. O facto é que nesse dia e nos que se seguiram, apenas a Rádio Renascença falou do assunto. Um facto que terá resultado dos inúmeros contactos estabelecidos pelos colaboradores do primeiro-ministro em que se procurava demonstrar que a investigação do ‘Público’ teria resultado do facto de Belmiro de Azevedo, o dono do jornal, ter perdido a OPA que lançou sobre a Portugal Telecom.
José Sócrates é, porventura, o primeiro-ministro que mais vezes liga directamente para jornalistas. Cavaco Silva nunca o fez. António Guterres e Durão Barroso só muito pontualmente o fizeram. Uma prática pouco habitual e que, muitas vezes, é entendida como forma de pressão sobre os «media». Ao longo da semana que durou a investigação do ‘Público’, o Expresso apurou que José Sócrates ligou, pelo menos, seis vezes ao jornalista que investigou a história.
Uma prática que Ricardo Costa não considera negativa: “José Sócrates ligar não é um problema. Os jornalistas têm que saber defender as notícias que têm”.
O director da SIC-Notícias sublinha que aqui existe também “uma questão geracional” uma vez que a geração de jornalistas que hoje fazem política nas redacções acompanhou de perto a ascensão de José Sócrates. “Este é o primeiro chefe de Governo que trato por tu”, garante Ricardo Costa.
A prática seguida por este primeiro-ministro e seus colaboradores tem sido muitas vezes apontada pelos partidos da oposição, sobretudo pelo PSD, como uma ameaça à liberdade de imprensa. Ricardo Costa rejeita liminarmente esta tese: “É patético dizer que a liberdade de imprensa está ameaçada. É patético pensar que o Governo consegue controlar a comunicação social privada”.
José Manuel Fernandes, do ‘Público’, recusa também falar de ameaças à liberdade de imprensa por causa destas atitudes, apesar de dizer que não gosta “de ouvir comentários do primeiro-ministro nos aviões sobre a forma como certos órgãos acompanham determinado assunto”. Afirmações que são encaradas como tentativas para condicionar a informação.
Aliás, o actual Governo é frequentemente acusado de ter uma poderosa e eficaz máquina de propaganda. Francisco Sarsfield Cabral considera que “a ‘central de comunicação’ não é o problema. Cabe-nos a nós defendermo-nos dela. Só se formos anjinhos é que eles nos derrotam”.
Perante estas acusações, uma fonte do gabinete do primeiro-ministro recordou ao Expresso que este foi o primeiro Governo a manter as administrações e direcções de informação dos órgãos de comunicação social do Estado, que tinham sido nomeadas pelo Governo anterior. “Há uma cultura de respeito pelo cumprimento dos mandatos”, sublinha a mesma fonte.
Por outro lado, recorda-se que não foi este Governo nem o PS que afastaram Marcelo Rebelo de Sousa de um canal de televisão privado por causa das suas críticas ao Executivo anterior. Ao contrário, Marcelo mantém o seu programa na RTP, onde diz o que quer com “total liberdade”.
Sobre a existência de uma poderosa máquina de propaganda, a mesma fonte é peremptória: “O que existe é uma agenda política e de políticas bem organizada”.
Há, no entanto, quem prefira não se comprometer com comentários às alegadas ameaças à liberdade de imprensa. “Esse é um assunto sobre o qual não tive, não tenho e não terei nunca opinião”, afirmou ao Expresso José Fragoso, director da rádio TSF.
Mas se a ameaça existe e não vem do Governo, vem de onde? O consenso é mais ou menos generalizado: “A forma como a ERC actua e entende os seus poderes é que representa um perigo para a liberdade de imprensa”, acentua José Manuel Fernandes, apontando o dedo a PS e PSD por serem os pais da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Nuno Saraiva
Expresso, 31 de Março de 2007